"O luxo já recuperou desde a pandemia. Crescemos 20% no primeiro trimestre"
Nasceu no Porto e é formado em Economia. Diz que a moda "não foi amor à primeira vista". Primeira veio a programação, aos 8 anos, depois a economia e a seguir a moda, em 1996. Lançou uma empresa de programação, depois uma marca de sapatos com a qual foi para Londres abrir a primeira loja com 20 metros quadrados em Covent Garden. Daí até idealizar a Farfetch foi um passo breve mas, ao mesmo tempo, de gigante. Há dois anos criou a Fundação José Neves e apostar nas competências é central na sua estratégia.
Apostar na Educação é uma das suas prioridades?
Sim, penso que a missão da Fundação é ajudar a tornar Portugal uma sociedade de conhecimento. Isso vem muito da nossa crença de que a nossa felicidade depende do conhecimento do mundo lá fora e do mundo cá dentro. Quando falamos do conhecimento do mundo lá fora, falamos das áreas da ciência, da tecnologia, de toda a cultura, que nos permitem entender e interagir melhor com a realidade. É aí que a parte da Educação é absolutamente fundamental. Mas não só a Educação tradicional no sentido académico, mas também na elevação das competências e da empregabilidade. Esse é um dos pilares fundamentais da Fundação. O outro, é o pilar do autoconhecimento, saúde mental e desenvolvimento pessoal.
Considera que o Estado da Nação na Educação tem nota negativa?
Penso que há que reconhecer o grande avanço que Portugal fez. Nasci em 1974, quando tínhamos taxas de analfabetismo absolutamente chocantes e, nestes 48 anos que passaram, foi feito um avanço significativo. Mas estamos muito aquém de onde deveríamos estar, e muito abaixo da média europeia. É absolutamente essencial que invertamos essa trajetória e é isso que o estudo vem trazer às pessoas, às empresas e às instituições.
Como incentivar os empregadores a ter mais formação?
Quando falamos de produtividade temos de entender o que isto é. A produtividade é o valor acrescentado que é criado ao nível das empresas e só depois a nível individual. Ou seja, uma pessoa pode ter todas as competências e ser incrivelmente produtiva no sentido em que faz tudo o que tem de ser feito, com criatividade, com talento e com afinco, mas se trabalhar numa empresa que não é bem gerida ou num setor de baixo valor acrescentado, a produtividade desse setor vai ser muito baixa e não há nada que o colaborador possa fazer para inverter isso. A produtividade é um problema de todos. É um problema das empresas, que devem posicionar-se em produtos e serviços de maior valor acrescentado, dos empresários e dos quadros dessas empresas que têm de apostar nas suas competências.
Os números mostram que 47% dos nossos empresários não terminaram o ensino secundário e isto é chocante. E com certeza que temos empresários excecionais que, sem a necessidade de seguir uma via académica, conseguiram manter a curiosidade intelectual e progredir ao longo da vida. Mas não podemos estar à espera das exceções para levarmos a nossa sociedade para um patamar superior. É muito importante que os empresários tenham noção de que aprender ao longo da vida é importante e, mesmo que não tenham tido um grau académico, há sempre possibilidade de fazer formações. Hoje em dia, temos até formações online das melhores universidades do mundo, mesmo MBA para pessoas que não têm licenciaturas, portanto, existem uma série de mecanismos que permitem aos empresários e aos quadros elevarem a sua produtividade. Porque uma das coisas que o estudo também mostra é que ter um pequeno número de jovens com alto grau de competência não adianta e até pode ter um efeito negativo. Ter um jovem altamente qualificado numa empresa que não tem produtos nem serviços, nem uma média de trabalhadores com essas competências, não vai fazer a diferença.
É quando as empresas começam a ter entre 30% a 40% de colaboradores com formação superior ou com elevado grau de competências que se vê a inflexão da produtividade. A produtividade é um problema de todos, temos de a agarrar de uma perspetiva individual e depois empresarial e da sociedade.
No mundo digital da Farfetch tudo é mensurável. Que conselho pode dar aos empresários para melhor medirem e incentivarem a produtividade?
Existem boas práticas para isso, mas penso que a aposta no capital humano é essencial. Esta questão das competências, da formação e da formação ao longo da vida, no ramo tecnológico, por exemplo, as capacidades profissionais de um programador ou analista de sistemas, ficam completamente obsoletas ao fim de três anos. O que significa que se não existir uma aposta contínua dessas pessoas e dessas empresas em aprender constantemente, a produtividade vai de certeza cair. É o upskilling, reskilling e a aposta no capital humano com departamentos de pessoas e talentos.
As pessoas e os talentos têm de ser valorizados com formação contínua, de elevada qualidade e com melhores práticas de gestão. Mas estas práticas de gestão vêm com a melhoria de competências dos gestores das empresas.
Há a intenção de entregar o relatório ao governo, no sentido de contribuir para as políticas públicas?
O relatório é para todos, para as famílias, para as empresas, para as instituições de ensino e, porque não, para o governo e outras entidades se o quiserem utilizar. Não há nenhum público-alvo concreto, a nossa ideia é tentar fazer um trabalho que achámos que não estava feito na totalidade. Queríamos reunir dados e insights sobre Educação, competências e emprego, e apontar alguns caminhos claros que esses dados factuais e estatísticos parecem indicar.
Não deveria ser esta área da total competência do governo e do Estado?
Não acredito neste nanny state, como se costuma dizer em Inglaterra, e acho até tóxico quando entregamos o nosso futuro a alguém. Sejam os nossos pais, sejam os nossos professores ou sejam os nossos governos.
Esta tendência de dizer que tudo está mal porque o governo está mal, acho isso tóxico. Tira-nos o poder de mudar as nossas próprias vidas e qualquer história que criamos na nossa cabeça em que o poder sai de nós e passa a ser culpa do outro, seja do vizinho ou seja do governo, perdemos uma oportunidade. Perdemos a oportunidade de entender que o futuro está nas nossas mãos e que temos de o agarrar. Temos tudo disponível hoje em dia, temos acesso - e a internet veio trazer isso -, aos melhores professores universitários e às melhores universidades através de formações online.
Temos, em Portugal, universidades, academias e politécnicos de grande valia. Temos cada vez mais, e é isso que a fundação tenta trazer, tanto com as bolsas reembolsáveis ou com o 29K, que é um programa a nível de desenvolvimento pessoal, ferramentas que estão provadas cientificamente que funcionam e que nos podem ajudar. Estamos à espera de quê? Se estivermos à espera do governo, diria que perdemos uma oportunidade grande.
Ainda assim, considera que o governo poderia fazer mais?
Penso que essa é a responsabilidade do governo e será depois responsabilidade dos eleitores julgar os governos. Felizmente, vivemos em democracia, mas, mais uma vez, nós temos o poder de mudar as nossas vidas, temos muito ao nosso dispor e o dever que temos é, quando temos um pouco a mais, partilhamos com os outros para que também possam agarrar essas oportunidades.
A Fundação traçou metas ambiciosas até 2040. Acha que hoje há uma espécie de crise de ambições em Portugal?
Os portugueses têm um talento incrível e provámo-lo em todas as áreas. A nível da tecnologia temos um ecossistema incrível, mesmo a nível farmacêutico, criativo, desportivo, talento não falta.
Temos um capital humano incrível que é a nossa maior riqueza. Falta, por vezes, em todos nós, coragem, ambição, convicção de que podemos realmente agarrar o futuro nas nossas mãos e construir algo melhor para nós e para os que nos rodeiam.
Até 2040 a fundação propõe-se a acabar com essa eventual crise das ambições?
Não conseguimos fazer nada que as pessoas não queiram fazer, e temos de ter a humildade de entender que a Fundação é apenas um pequeníssimo grão de areia naquilo que é a sociedade portuguesa. A ideia é partilharmos um pouco da nossa experiência empresarial e tentar elevar e consciencializar os portugueses que quiserem ouvir a mensagem, para a possibilidade e para as ferramentas que existem e que proporcionamos, para eles se desenvolverem a nível pessoal e profissional.
Uma das ferramentas é a atribuição de bolsas reembolsáveis e já foram atribuídas várias. Porquê esta aposta nas bolsas e como é que se diferenciam de outras?
Em primeiro lugar, a Educação é o melhor elevador social que temos, é o mais importante para termos uma sociedade menos desigual. Estudar, em Portugal, a partir do ensino superior é caro. Diria que no ensino básico, preparatório e secundário estamos bem e, portanto, quem quiser ter os filhos a estudar consegue de forma gratuita ou quase. O ensino superior começa a ser caro e o ensino de pós-graduação começa a ser proibitivo. Foi por aí que começámos, queremos ajudar talento a ter a possibilidade de prosseguir a elevação das suas competências. Infelizmente, em Portugal existem muito poucas outras alternativas.
A nível de créditos, o sistema bancário nunca apoiou e nunca teve propensão, ao contrário dos Estados Unidos e no Reino Unido. Vivo no Reino Unido e vejo que lá funciona muito bem, nos Estados Unidos não tão bem, mas funciona.
Existe acesso amigável e não-predatório a financiamento para estudantes propiciado pelo governo e pelas instituições financeiras, mas aqui em Portugal não existe. Existem outros sistemas de bolsas, certamente meritórios, e outras instituições com sistemas de bolsas, mas penso que tudo não basta, é preciso mais e nós trazemos um modelo inovador. É o modelo dos ISA (Income Share Agreement) que significa que não há responsabilidades de empréstimo, a não ser que o trabalhador ou trabalhadora tenham conseguido o emprego que queriam e a um nível de salário determinado.
Depois, contribuem para a pool e para que mais portugueses e portuguesas possam beneficiar, e os resultados são espetaculares. Já temos alguns resultados, como 8500 euros em média de subida do salário pós-ISA e uma empregabilidade acima de 90%.
Sabemos também que uma grande percentagem das pessoas não teria feito aquela formação se não tivesse os ISA. É algo necessário e sem os ISA essas pessoas não teriam progredido como progrediram e isso deixa-me muito feliz.
Devido à proximidade entre salário mínimo e salário médio em Portugal, há o risco do elevador social avariar?
Há muito a fazer para que os botões do elevador funcionem melhor, mas penso que a aposta na Educação é fundamental. Se repararmos, em certas áreas, há mais procura de emprego do que oferta e temos uma progressão salarial extraordinária.
Por exemplo, nas áreas da tecnologia e do digital temos aumentos dos salários médios na ordem dos 40% aos 50%, só nos últimos 18 meses, o que é extraordinário. Essas pessoas estão a subir, e rápido, no elevador social.
Como é que colocamos mais portugueses e portuguesas nesse elevador? Não existe outra resposta se não apostar no capital humano, apostar nas competências, apostar numa adequação melhor entre oferta e procura. É por isso que temos o Brighter Future, o portal onde trazemos dados concretos para que as pessoas escolham carreiras que esses dados mostrem que têm mais procura e salários médios mais elevados e apontamos o caminho das competências que têm de ser adquiridas.
Não há outro caminho, não há fórmulas mágicas, o elevador social está completamente ligado às competências e, por sua vez, à Educação.
Pode desincentivar os jovens a continuarem a estudar?
Continuamos a ter uma diferença muito grande entre os salários de jovens com licenciaturas e jovens sem licenciaturas e o estudo também mostra isso. Vale a pena estudar, é inequívoco.
Não estamos a ter a progressão que todos gostaríamos de ter. No nosso entender o estudo aponta nesse sentido, pela desadequação de oferta e procura. Ou seja, temos muitos licenciados em áreas em que não existe trabalho e está a criar uma depressão nos salários médios e até nos níveis de empregabilidade.
É urgente que as pessoas invistam nas coisas certas e temos todas as ferramentas para isto, temos o Estado da Nação, temos o Brighter Future [maior base de dados de Educação, empregabilidade e competências em Portugal sobre 4000 cursos e formações e mais de 200 profissões e 200 competências], temos os ISA, e com essas três ferramentas já conseguimos ajudar algumas pessoas.
Que outras iniciativas podemos esperar nos próximos dois anos?
Vamos reservar as surpresas para quando elas forem aparecendo. Para mim, é muito importante fazer filantropia com impacto e temos de medir esse impacto. Estamos agora, pela primeira vez, a medir o impacto dos ISA, do Brighter Future, do 29K e estamos muito satisfeitos com os resultados. São iniciativas em que vamos apostar cada vez mais. Quando sentirmos que outras iniciativas se tornam importantes ou urgentes, temos algumas ideias já, mas não quero estragar a surpresa.
Hoje a própria Farfetch tem tido dificuldade em recrutar?
Sim, como todas as tecnológicas, existe uma pressão muito grande, existe muito mais procura do que oferta e os salários vão continuar a subir. Vemos um país com tanto talento e vemos uma disparidade entre oferta e procura do mercado de trabalho que é totalmente evitável. Isto bastava que a distribuição do investimento na Educação e formação fosse muito mais adequada às realidades do mundo.
O que está a dizer é que as universidades também não estão a formar de acordo com as necessidades das empresas?
Sim, não estão a formar de acordo com as necessidades das empresas. Esse é um problema crónico, não é um problema só português, os sistemas académicos não foram criados para o século XXI e para este ritmo de mudança.
Quanto tempo demora um politécnico ou uma universidade a lançar uma nova licenciatura? Demora anos. Se quiser ir buscar alguém que saia de uma universidade e que saiba de blockchain e criptografia, não há; machine learning e data science há um pouco, mas têm de evoluir muito para atingir os níveis que as empresas necessitam.
Temos de aprender com países como a Alemanha, que têm um sistema em que existe uma ligação muito forte das empresas ao sistema de ensino e em que essa transmissão das necessidades das empresas é feita de forma muito mais ágil. E o caso da Alemanha é paradigmático, com empregabilidade altíssima, produtividade e salários muito, muito altos, desses jovens que não foram pelo caminho académico das licenciaturas, mas pelo caminho mais politécnico.
Mas um verdadeiro politécnico, porque em Portugal o politécnico deveria ser muito mais valorizado do que o que é. É uma pena que assim seja, porque em França, por exemplo, os politécnicos são escolas de elite. São estas ideias que estão provadas já e que podem ajudar a esta adequação entre oferta e procura.
A quantos clientes chega hoje a Farfetch?
Atualmente, temos 3 milhões e 800 mil clientes ativos, temos mais de um bilião de visitas ao site e à app e é uma comunidade global, estamos presentes nos maiores mercados de moda do mundo.
No final de 2022 estima que a empresa consiga registar lucros, apesar de toda esta convulsão pós-pandémica?
É o nosso objetivo, sim. Apesar de ter sido um ano que começou com a nossa decisão de suspender atividades na Rússia, a China está com dificuldades de gerir a covid, vai abrindo e fechando o que tem impacto na economia global, e na Farfetch em particular. Mas continuamos a pensar que será um ano de progressão na nossa missão e com lucros, com uma estimativa de mais ou menos 1% do EBITDA face à receita. São cerca de 50 milhões de euros.
Fecharam a operação na Rússia, mas este era um mercado de muita importância nas vossas vendas?
Representava 6% das nossas vendas e cerca de 8% do marketplace. Tínhamos cerca de 450 mil clientes, tínhamos tido sucesso nesse mercado à custa da nossa equipa local, que é muito boa, e tenho muita pena que não possamos continuar a dar sequência ao trabalho. As razões são claras e concordo totalmente com as sanções que estão a ser impostas a Putin. Temos de fazer o que é correto, mas vai ser um ano de oportunidade.
Como é que recupera o valor equivalente a esse mercado?
Noutros mercados. Estamos presentes no Médio Oriente, no Brasil e no México e estamos a crescer bastante nesses mercados. Rapidamente conseguiremos colmatar essa perda e é um ano de outro tipo de oportunidades para a Farfetch.
No caso da China, o que se perdeu?
Ainda é difícil dizer porque penso que é apenas um desfasamento. A procura está lá, os chineses são o segundo maior mercado de luxo a nível mundial e, para a Farfetch, também é o segundo maior mercado. Aquilo que há é um desfasamento na procura porque a logística parou na China, houve um abrandamento dos portos e das alfândegas. O governo chinês tem tolerância zero e, portanto, fecha tudo assim que há casos de covid, incluindo aeroportos e portos. É mais uma questão de logística, porque a procura continua lá. Assim que a logística aliviar, certamente que iremos capturar essa procura.
Há pouco disse que este é um ano de novas oportunidades para a Farfetch. Isto quer dizer o quê?
É um ano com todas as crises e o mundo atravessa uma crise macroeconómica de inflação, possível recessão, taxas de juro altas, etc.. São oportunidades para as pessoas, as famílias e empresas olharem para o que fazem e aumentarem o grau de exigência. É racionalizarem as suas operações e é esse contexto que vamos agarrar também.
Mas não teme que este contexto macroeconómico prejudique as vendas de um segmento que é de luxo?
Não, penso que o segmento de luxo recuperou em relação à pandemia já, com exceção da Rússia e da China, continua a ter crescimentos muito elevados. A Farfetch também, fora a Rússia e a China, já crescemos 20% este ano no primeiro trimestre. Tínhamos crescido 60% o ano passado no primeiro trimestre, portanto, são 20% em cima de 60%, o que é fantástico.
O contexto macroeconómico é difícil, com alta das matérias primas, das taxas de juro e da inflação. Na crise há oportunidades?
Acredito sinceramente que sempre que há uma crise - e crise para os gregos era a palavra que marcava o ponto de viragem de uma situação -, que são pontos de viragem e mais nada. Com a covid tivemos uma crise humanitária e de saúde terrível, agora temos uma crise de inflação e possível recessão. São indicadores que a realidade nos coloca para revermos as nossas vidas e, no caso das empresas, é a mesma coisa. Forçam-nos a reequacionar a forma como olhamos para o mundo, a forma como fazemos as coisas e é essa oportunidade que devemos agarrar.
Falando em pontos de viragem, o Brexit obrigou-o também a reequacionar algumas das estratégias?
Sim, claro. Por exemplo, grande parte da nossa logística estava no Reino Unido e mudámos para a Holanda, a nível de talento, passámos a recrutar mais talento em Portugal e noutros sítios, porque tornou-se difícil recrutar no Reino Unido.
Houve alguns ajustes a fazer e o mercado inglês continua a ser afetado, porque os nossos consumidores do Reino Unido e a própria situação económica do Reino Unido não está muito boa. Enquanto europeu, acho que foi um tiro no pé que o governo inglês deu, mas está feito, ninguém vai voltar atrás e, portanto, agora temos de viver com o Brexit.
Além de vir recrutar mais a Portugal, como já disse, prevê também que a Farfetch possa crescer mais no mercado nacional?
Sim, sim. Em termos de equipa continuamos a crescer e a nível de mercado também, embora seja pequeno para nós comparativamente com outros e no contexto global do luxo, mas é um mercado que tratamos com muito carinho.
No final de 2020, disse que estávamos perante uma mudança nos hábitos de consumo. Entretanto, com a pandemia e com a guerra, esses hábitos voltaram a alterar-se?
Sim, penso que estão em alteração constante. Acho que a pandemia foi a maior alteração, porque foi a descoberta das compras online para muita gente que não queria comprar online porque não se sentia confortável.
A nível de moda, também houve uma mudança para algo menos formal e mais casual e acho que isso veio para ficar. Continuamos a ver pessoas a usar ténis com fatos em situações de trabalho mais formais, fatos de treino da Gucci da cabeça aos pés utilizados pelas celebridades.
É interessante ver estas alterações na moda porque a moda é uma parte da civilização que traduz o nosso subconsciente e o inconsciente coletivo. É muito interessante ver que essas tendências refletem o que o mundo passou e continua a passar.
No segmento do luxo como tem evoluído a tendência para a sustentabilidade dos materiais?
Na Farfetch temos muitas iniciativas ambientais: primeiro, fazemos o offset de carbono de todos os envios e devoluções - se comprar na Farfetch o carbono emitido é recompensado por projetos de reflorestação, essencialmente.
Temos uma agência que classifica cada um dos produtos na Farfetch e, mediante esses critérios, temos uma classificação conscious. Portanto, os nossos clientes, que só querem comprar produtos amigos do ambiente, podem usar esse filtro e as vendas destes produtos estão a crescer muito mais do que as outras vendas.
Temos também serviços de compra de artigos usados e de recuperação, ou seja, de restauração. Damos aos nossos clientes a oportunidade de restaurarem as suas peças, o que é ótimo para o ambiente.
Existem muitas iniciativas que temos feito no sentido da nossa estratégia de sustentabilidade e é, sem dúvida, uma tendência que temos estado a ver.
Quais são os próximos passos em termos de desenvolvimento digital? Que Farfetch imagina ter nos próximos anos?
A nível de inteligência artificial e machine learning há imensas aplicações no nosso negócio e fazemos uso constante dessas tecnologias, a nível de recomendações, a nível dos rankings dos produtos e de personalização da experiência.
Depois, uma outra parte que me fascina muito: é todo este mundo do metaverso e NFT, em que neste momento aceitamos criptomoedas.
Bill Gates disse ainda há pouco tempo que metaverso e NFT são todos um logro. Concorda?
Concordo, de alguma forma. Digo sempre que se a Bitcoin vale 20 mil ou dois, é completamente especulativo, porque não é um ativo. Uma empresa produz bens e serviços, uma quinta produz produtos agrícolas, existe uma utilidade inerente a esses ativos.
Os ativos digitais não têm uma utilidade inerente e tanto podem valer dois mil como 20 mil, portanto ele tem toda a razão nesse aspeto. O meu conselho é que as pessoas não apliquem as poupanças.
Mas acho que descartar tudo isso só por essa questão, é um erro, porque a tecnologia em si é extremamente poderosa. A tecnologia em si tem vários fatores de inovação que penso que têm muitas aplicações, não só na parte financeira, mas também na forma como a própria internet funciona.
Imaginemos um futuro em que o Facebook deixa de ser dono dos meus dados e eu poderia ser dono dos meus próprios dados e ter um futuro em que, em vez de receber pontos de lealdade, quando vou a uma loja e faço compras, poderia receber tokens que seriam meus e que seria livre de vender ou de usar em qualquer outra loja.
Ou seja, existem aplicações que não estão ligadas à Bitcoin, aplicações da tecnologia, em si, que não podem ser descartadas. Agora, sob perspetiva de um ativo financeiro para aplicarem as suas poupanças, aí concordo totalmente com Bill Gates, é totalmente especulativo.
Mas é especulativo como o ouro também o é, porque o ouro não produz nada, embora possa ser utilizado em joias, modas e até nalguns componentes eletrónicos, mas não é por aí que vai o valor do ouro. O seu valor é de expectativa de mercado, é uma convenção porque se convencionou que aquele metal tinha um determinado valor.
Neste intuito de investimento contínuo nas plataformas tecnológicas e nas áreas de que falámos agora, vai a Farfetch precisar de novas rondas de capital para alavancar ainda mais este investimento?
Não, estamos muito bem capitalizados e vamos terminar o ano com mais de 650 milhões de cash, não temos linhas tradicionais de crédito bancário e, portanto, vamos poder continuar a inovar e a investir. Ainda há muito para fazer e muito em que investir, porque esta empresa ainda está no início.
Até ao fim da década, onde quer levar a Farfetch?
A nossa missão é termos a plataforma global do luxo, é um setor de 300 mil milhões de dólares que vai ser até ao final da década superior a 500 mil milhões, mas é um setor que não está digitalizado.
80% de todas as compras neste setor ainda são feitas em lojas físicas e esta missão da Farfetch de digitalizar o setor do luxo é uma missão que ainda está na sua infância, ainda há muito a fazer até ao final da década.
Já somos líderes de mercado e com bastante diferença para o número dois e para o número três, mas queremos aumentar essa distância mais ainda e trazer mais inovação e sermos realmente revolucionários nesse espaço.
A Farfetch abriu uma loja do futuro. É uma aposta física e digital, em conjunto, e é para continuar?
Sim, exatamente. A Browns é a nossa loja do futuro, depois com a marca Chanel fizemos um projeto fantástico e todas as lojas Chanel em França estão equipadas com a nossa tecnologia. Fechámos recentemente com um grupo de lojas de departamento, que tem mais de 45 lojas de departamento nos Estados Unidos, precisamente para aplicar essa tecnologia nas vendas físicas. E isso é uma área que nos apaixona, porque é isso que acreditamos que seja o futuro, uma convergência do mundo físico com o digital.
Uma reportagem recente denunciou assédio na Farfetch. O que é que a Farfetch tem a dizer sobre essa denúncia?
Não vou fazer comentários em relação a isso. A Farfetch fez um comunicado oficial quanto a isso e não tenho nada a acrescentar.
Mas há um código de conduta rígido interno e que combata estas situações?
Claro, tal como comunicámos.
Como a igualdade de género é encarada no universo Farfetch?
Damos bastante atenção a esse tema e penso que o que as pessoas talvez não saibam é que a Farfetch foi uma das primeiras empresas a criar um Environmental and Social Governance Committee.
Esse comité é dirigido por uma mulher afro-americana muito apaixonada pelas questões da igualdade de género e pelas questões raciais, que tem a sua própria fundação e ela lidera esse comité e supervisiona a empresa.
Temos uma série de pilares na sustentabilidade, e já falei aqui de algumas iniciativas, e também de responsabilidade social e de governança, em que temos políticas muito fortes.
Para começar, medimos e publicamos os dados - o que em Inglaterra é até um imperativo legal, o que é ótimo -, sobre homens e mulheres da Farfetch que ocupam cargos de liderança, em que patamar da hierarquia, qual a distribuição entre homens e mulheres e as diferenças salariais entre homens e mulheres.
Na questão racial e étnica temos uma política ativa de aumentar as contratações de etnias e minorias. Temos uma boa representatividade, o nosso board é bastante equilibrado.
Para nós é bastante importante darmos o exemplo nas chefias e que as políticas de contratação e as políticas salariais sejam absolutamente equitativas. Para isso, fazemos medições objetivas e temos uma equipa inteira dedicada à inclusão e diversidade na Farfetch.
Temos dez comunidades de trabalhadores na empresa, temos a comunidade dos trabalhadores negros, a comunidade judia, a comunidade das mulheres e mães, temos a comunidade dos latinos e estamos em constante interação com eles.
Eu, em particular, estou em constantes reuniões com as comunidades para perceber quais são as sensibilidades no terreno. Ouvir deles diretamente é algo muito importante e na Farfetch temos linha aberta.
Toda a gente na empresa sabe o meu e-mail e estou aqui para as boas e más notícias. É uma política de porta aberta e essa questão da igualdade e diversidade é mesmo muito importante para nós.
O que é que falta fazer ao José Neves?
Falta fazer tudo, o futuro está sempre a construir-se! Para já, estou bastante ocupado, entre a empresa, a fundação e a minha família que cresceu recentemente - tenho duas meninas ainda bastante pequenas e seis filhos no total -, tenho a agenda bastante cheia. As minhas paixões, no mundo das empresas, são claramente a Farfetch e a Fundação que é uma paixão muito forte no lado da filantropia e do give back.
rosalia.amorim@dn.pt