O livro que disse a um povo que ele era um povo

Os Açores de hoje, apesar de todas as assimetrias, são Açores, em larga medida, como resultado do conceito verbalizado em "As Ilhas Desconhecidas", de Raul Brandão.
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"Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha em frente - o Corvo, as Flores, o Faial, o Pico, o Pico de São Jorge, São Jorge, a Terceira e a Graciosa..."

É uma das citações mais recorrentes de As Ilhas Desconhecidas, desde logo porque Nemésio veio a pô-la em evidência entre as exemplares epígrafes de Mau Tempo no Canal, magnum opus do romance açoriano (se não do século XX português). E não foi em vão que o poeta decidiu colocar Raul Brandão entre os mestres - desde logo, Chateaubriand e Melville - convocados para o chancelamento do seu supremo esforço narrativo.

Vitorino Nemésio fora um dos mais jovens companheiros dessa viagem mítica que, em 1924, Brandão empreendera pelas ilhas. Assistira ao modo como o então autor sobretudo de Húmus, já à beira dos 60 anos, interagira com elas. E ninguém como ele - açoriano e forasteiro ao mesmo tempo, além de criador - poderia reclamar-se em melhor posição, naquele momento e pelos anos fora, para discernir o que de autêntico e de ligeiro, de sábio e de simplesmente apaixonado resistiria no olhar levado por Brandão para o continente.

Aquela epígrafe é, no fundo, tão claro sinal do brilhantismo de um como da argúcia - e até da humildade - do outro.

Diferentes vultos da cultura e até da ciência se tinham, antes de As Ilhas Desconhecidas, debruçado sobre os Açores (e/ou a Madeira, como este também faz, embora talvez menos memoravelmente). Desde logo, os ditos epigrafistas de Nemésio. Mark Twain, que na verdade não lhes achou graça nenhuma. Darwin, que mais ou menos. Nenhum deles nos deu tão cabalmente o conceito da ilha em frente, e foi o conceito da ilha em frente - a tomada de consciência dele, os esforços para a sua integração numa linguagem comum aos açorianos das diferentes ilhas - que mudou tudo.

Até em termos políticos.

Em muitos aspetos, quando os Açores viram a autonomia consagrada na Constituição, em 1976, permaneciam mais um conjunto de ilhas do que uma região ou sequer um arquipélago. As primeiras conquistas autonómicas datavam já do século XIX, mas circunscritas à perceção de uma restrita elite político-social e, aliás, a duas ou três ilhas (senão sobretudo a uma). Muitas das restantes permaneciam fechadas sobre si, e quando não o estavam deviam as solidariedades às conveniências - as comerciais ou até apenas as de circunstância (que o mesmo é dizer: de geografia).

Para fazer triunfar a autonomia foi preciso, em primeiro lugar, instituir o instrumento político. Foi preciso, depois, criar (ou reforçar) nove portos e nove aeroportos, bem como estabelecer ligações regulares entre eles. Foi preciso fundar uma universidade onde as novas gerações efetivamente pudessem formar-se, livres das despesas de estudar no continente que - mais uma vez - reduziam as perspetivas a meia dúzia de eleitos. Foi preciso mesmo criar uma estação regional de televisão, de modo que, antes ainda de reconhecerem os restantes portugueses, os açorianos pudessem reconhecer-se uns aos outros.

Todos esses esforços vão beber àquele mesmo conceito. A própria literatura açoriana do pós-autonomia - pujante como poucas outras gerações literárias portuguesas do último quartel do século XX - cresce, em grande parte, a partir dele.

Em suma: os Açores de hoje, apesar de todas as assimetrias sociais e políticas, são Açores, em larga medida, como resultado desse conceito que, finalmente, As Ilhas Desconhecidas verbalizou.

Porque a ilha em frente não é apenas a ilha de facto em frente: é a ilha ao lado também, e é a ilha que está ao lado dessa. Porque a ilha em frente é em primeiro lugar um olhar: o reconhecimento do outro e o nosso reconhecimento como parte dele (e dele de nós). Um olhar que começou por ser erudito - com Brandão, justamente -, mas que, com o tempo, foi capaz de se tornar popular também.

A ele devem os açorianos boa parte daquilo que hoje os distingue no interessante mosaico de identidades e culturas que são capazes de constituir uma nação tão antiga e um país tão velho como os portugueses e Portugal.

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