Há uma pequena operação de jazz e blues a decorrer nos TVCine. Na última semana estreou-se Born in Chicago, sobre os primeiros músicos de blues e os seus seguidores nos anos 1960, e as próximas sextas-feiras abrilhantam-se com talentos do jazz - são bons programas para noites de verão, com garantia de qualidade musical. Desde logo, Blue Note Records: Beyond the Notes (dia 19, 22.00, TVCine Edition), um documentário, que passou no Doclisboa, não apenas centrado no percurso dessa ilustre etiqueta discográfica de jazz, mas também no diálogo geracional que nasceu do reconhecimento dos seus valores de origem, assentes na liberdade do artista e nas inovadoras expressões individuais. Não admira que por aqui se chegue aos caminhos do hip-hop, com a palavra "revolucionário" algumas vezes repetida..Assinado por Sophie Huber, Beyond the Notes começa precisamente com o ambiente de estúdio de gravação e as palavras dos novos músicos influenciados pela Blue Note, mais tarde cruzando os seus discursos com os de figuras veteranas como Herbie Hancock, Wayne Shorter e Lou Donaldson, que gravaram para a editora no tempo dos seus fundadores. O passado e o presente unem-se assim à luz da consciência muito clara de que a Blue Note foi um projeto único numa altura em que a grande maioria das discográficas estava mais focada em objetivos mercantis do que na identidade artística (já iremos ao caso particular de Thelonious Monk). De resto, basta olhar para o seu catálogo e perceber que a reverência é mais do que justificada - a certa altura, o atual presidente da Blue Note, Don Was, diz que provavelmente um neurologista não seria capaz de apontar a diferença entre meditação e ouvir o clássico de Wayne Shorter Speak No Evil. Apenas um exemplo delicioso do poder da música por trás das emblemáticas capas de álbum desenhadas por Reid Miles..Na génese de tudo estão Alfred Lion e Francis Wolff, dois judeus alemães, amigos de infância, que escaparam à perseguição nazi imigrando para Nova Iorque, onde fundaram em 1939 a Blue Note Records. Dois tipos sem nenhuma ligação específica ao jazz, mas com uma admiração inexplicável pela sua sonoridade: não a compreendiam, limitavam-se a senti-la na pele. Especialmente Lion, que foi quem decidiu, de forma espontânea, que queria gravar discos só porque gostava do que ouvia. Ou seja, por pura diversão..É aí que cai por terra aquele velho cliché do empresário nervoso com os resultados. Lion (e falamos apenas dele porque Wolff figurava sobretudo como o homem que fazia belas fotografias das sessões) era movido pelo espírito da arte, sem esperar que determinado disco fosse um sucesso. E a verdade é que, no início, a editora não conseguia ser mais do que um modesto ganha-pão, recusando-se a abdicar da sua filosofia de base. Como recorda o saxofonista Lou Donaldson no documentário, Lion "não incomodava os músicos, respeitava-os". Algo que Herbie Hancock corrobora a cem por cento: "Nunca senti pressão vinda deles para criar de uma forma particular que não fosse o que pudesse sair de mim." Criação pura, nunca aprisionada..O que pode explicar o caso de Thelonious Monk, hoje considerado um gigante do jazz. Em 1947, quando a Blue Note decidiu apostar nele, não o era - o culto deste revolucionário das notas resumia-se aos seus pares e a Alfred Lion, que investiu na sua música durante cinco anos, até ser obrigado a desistir. Não conseguiu, na altura, quebrar a resistência do ouvido das pessoas à novidade, e isso colocou a editora em risco. Mas a questão que permanece é esta: "Sem a Blue Note, provavelmente nunca teríamos ouvido falar de Monk. Porque as outras empresas, como a Columbia [que depois o gravou] e a Capitol, não estavam interessadas", refere Donaldson..Miles Davis, John Coltrane, Art Blakey são outros dos nomes sonantes que fazem parte do legado Blue Note, o "Cadillac do jazz", que nos anos 1960, depois de dois sucessos acidentais (do trompetista Lee Morgan e do pianista Horace Silver), ficou pressionada pelos distribuidores, que queriam mais hits, acabando por ser vendida em 1966. Para Alfred Lion a música estava em primeiro lugar..É desta integridade que se faz também Blue Note Records: Beyond the Notes, um documentário que vai até à descoberta de Norah Jones, provando como uma certa cultura de trabalho se pode manter. Entre estupendas fotografias das sessions (da autoria do cofundador Francis Wolff), excertos de arquivo, capas de álbuns, entrevistas e alguma diversão de estúdio, aqui se conta a história de uma marca que permitiu a muitos entrar numa zona desconhecida..Depois do panorama masculino da Blue Note, Ella Fitzgerald: Just One of Those Things (dia 26, 22.00, TVCine Edition) surge como uma espécie de outra face do jazz. Mas o documentário de Leslie Woodhead distingue-se ainda por outra razão. Este não é um olhar propriamente trágico sobre a vida de uma artista, como acontece com o documentário e o biopic de Billie Holiday, ambos estreados por cá no último ano. Há até uma ideia no primeiro (Billie) que pode ser adequada para assinalar a diferença entre as duas cantoras afro-americanas: quando Ella Fitzgerald diz "o meu homem foi-se embora" é como se ele tivesse descido a rua para ir comprar pão; quando Billie Holiday diz "o meu homem foi-se embora", pensamos num sujeito a descer a rua, de mala feita, para não mais voltar..De facto, há uma suavidade, agilidade e leveza em Fitzgerald que sugere uma dimensão musical mais confortável. Porém, não se pode dizer que não exista uma nota, nuance ou inflexão de melancolia na sua espera "pelo homem"..O documentário de Woodhead agarra-se a essa melancolia sobretudo quando a ouvimos falar da solidão sentida por não ter ninguém a quem contar os pequenos problemas do quotidiano ao chegar a casa. Isto na altura em que já tinha tido um breve casamento, com um membro da sua banda, Ray Brown, e vivia sozinha com o filho adotivo. Em todo o caso, para Ella a música era o casamento perfeito, e nunca se cansou das tournées constantes. Havia uma alegria no trabalho que contrabalançava o quase vazio doméstico..Sem drogas nem álcool - conta-se até que, nas viagens com a banda, se sentava na parte de trás do autocarro com o casaco sobre a cabeça para filtrar o ar -, é possível fazer um retrato lúcido de Ella Fitzgerald a partir do momento em que, com 16 anos, subiu ao palco do teatro Apollo, no Harlem, para... cantar. À partida estava ali para dançar, mas ao perceber que não era tão talentosa nesse departamento quanto as raparigas que atuaram antes dela, desistiu do número à última da hora e limitou-se a improvisar, surpreendendo tudo e todos..Se há momentos que definem um artista, este é certamente um deles. Não só Ella revelou aqui o "estilo" de improvisação que depois desenvolveu na sua técnica vocal jazzística, como deu conta de uma candura fascinante: ela entregava o seu talento sem perceber até que ponto era capaz de deslumbrar os outros. Como diz o seu último manager, Jim Blackman, "não tinha noção da sua própria genialidade". Perguntava-lhe no final de concertos de casa cheia, e na sequência de aplausos estrondosos, se ele achava que as pessoas tinham gostado....O percurso musical de Ella é o forte deste documentário que apresenta as fases da sua carreira brevemente contextualizadas por especialistas. Desde o início como cantora de uma orquestra de jazz do Harlem, nos anos 1930/40, sob a liderança de Chick Webb, que se tornou seu mentor, dando aí os primeiros passos entusiastas no género bebop, ao mesmo tempo que desenvolvia o scat (técnica introduzida por Louis Armstrong, a imitar o improviso de um instrumento de sopro), até ao ponto culminante nas mãos do produtor Norman Granz, a quem chegou já com um swing bem desenvolvido. Nesse período (anos 1950) foi levada a abrandar o ritmo das performances para o formato de baladas e a contemplar o Great American Songbook. Granz afastou-a da cultura dos clubes e fê-la pisar os grandes palcos do mundo, onde alcançou a fama e projeção internacional, mais tarde marcada por outro dos seus momentos definidores: aquele em que apresentou uma versão de How High the Moon durante um espetáculo em Berlim, citando, em cinco minutos, melodias de mais de 40 músicas!.Sozinha no mundo aos 13 anos, depois da morte da mãe, e com uma experiência violenta de reformatório, Ella Fitzgerald não foi imune à questão racial que sempre manchou os Estados Unidos (reservada como era em matéria política, falou do assunto numa única entrevista, que acabou por não ir para o ar). Em Los Angeles, o acesso aos clubes noturnos frequentados pelos brancos ricos estava-lhe praticamente vedado - foi por influência de uma grande admiradora, Marilyn Monroe, que conseguiu atuar no Mocambo..Estas e outras curiosidades de arquivo ajudam a lançar uma visão global sobre o perfil daquela a quem chamaram de primeira-dama da canção, a mulher cuja voz "salta por cima de poças, que podem ter um metro e oitenta de profundidade, sem nunca afundar", palavras do filho Ray Brown Jr. Ella Fitzgerald: Just One of Those Things também faz um pouco isso..dnot@dn.pt