O instante decisivo de Ritesh Batra

Chega-nos da Índia um drama romântico à moda antiga. Ao arrepio da moda das selfies, Fotografia reflete sobre a verdadeira potência emocional de uma imagem.
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"As histórias nos filmes são todas iguais", diz-se a certa altura neste Fotografia, em jeito de autocomentário. A ideia poderia conter uma espécie de desencanto assinalado, ou o desabafo de uma falta de inspiração criativa, mas preferimos interpretá-la como uma forma de se assumir a beleza clássica dessas histórias - não é aí que o cinema pede inovação. Digamos que o indiano Ritesh Batra (realizador de A Lancheira) não tem problema nenhum com a repetição de um modelo narrativo, já que a suavidade com que o faz remete para a primordial envolvência do espectador com as imagens: essa leve comoção do olhar que nasce do movimento romanesco delas.

O homem e a jovem mulher desta já-mil-vezes-contada história conhecem-se fugazmente no Portal da Índia, monumento icónico da cidade de Bombaim. Ele está lá a tirar fotografias a turistas, para ganhar a vida; ela, desviando-se por conta própria do caminho para casa, acaba no meio de uma multidão onde ele a descobre e pergunta se quer que tire um retrato para mais tarde recordar - ou, como diz, para sentir na cara o sol daquele dia. Ela aceita, e depois de a foto sair pela ranhura do aparelho de revelação instantânea, desaparece levando consigo o mesmo mistério com que surgiu diante deste humilde fotógrafo.

Mais tarde, de regresso ao ainda mais humilde lar, ele recebe a notícia de que a sua avó deixou de tomar os medicamentos como forma de protesto por ele não arranjar uma mulher. E nesse lance de comédia social, Batra inscreve a magia latente do romance: quando o protagonista observa de novo a fotografia que tirou à jovem no Portal, decide escrever uma carta à avó apresentando-a como sua namorada... Depois disso, o universo vai alinhar-se para que os dois se voltem a cruzar, e ela - uma aplicada estudante de contabilidade, que perante a senhora idosa se faz passar por alguém de origens modestas (ao contrário da sua real condição) - parece perpetuar na forma de estar a mesma impassibilidade de uma imagem fotográfica.

De facto, é quase impossível desviarmo-nos de uma certa simbologia contida no título: Fotografia é um filme que replica o paciente gesto da revelação da nossa imagem diante do outro, e vice-versa. Por isso mesmo, a chance romântica parte desse registo fixo que depois ganha movimento. O homem sente-se atraído por uma fotografia - que o realizador tem a inteligência de nunca nos mostrar, mantendo suspenso o "segredo" da sua força - e a mulher confessa que esse retrato extraiu uma imagem que ela não tinha de si própria.

Pelos caminhos deste conhecimento mútuo, Batra deixa ainda passar as texturas da sociedade indiana, tão visíveis na relação terna da jovem com a sua empregada, mas também na referência subtil à hierarquia do sistema de castas, quando a avó do fotógrafo lamenta o tom escuro da pele dele (diz que é de apanhar muito sol) por contraste com a da rapariga... E, como acontece em todas as histórias, a vida não está facilitada para quem se relaciona com uma pessoa de outro estatuto social.

Ao pegar nisto tudo, Ritesh Batra sabe bem como cozinhar uma melancolia imersiva, explorando com discrição e gentileza cada plano que junta os atores Nawazuddin Siddiqui e Sanya Malhotra, em personagens plenas de timidez estética. Na sua expressão agradavelmente démodé, Fotografia fixa-nos numa serenidade enamorada do mais clássico motivo: o encontro de duas almas.

Classificação: *** Bom

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