O inconveniente Vilhena

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Uma das grandes vantagens das democracias sobre as ditaduras é que são capazes de rir de si próprias. Ou, no mínimo, fingem ser capazes. Eu não sabia disso quando era miúdo e em Setúbal ia quase todos os dias a um barbeiro trocar livros do Mickey ou dos Heróis Marvel e lia meio às escondidas A Gaiola Aberta, que nem me passava pela cabeça levar para casa. Duvido também que o senhor Joaquim permitisse a uma criança de 8 ou 9 anos comprar uma revista em que a sátira política era feita através de desenhos de líderes políticos nus. Estávamos no final dos anos 70, a democracia era ainda uma jovem, mas mostrava notável poder de encaixe, muito mais do que o Estado Novo. Não creio que Eanes, Soares, Cunhal, Freitas ou Sá Carneiro se tenham incomodado muito com a ousadia de José Vilhena. Os problemas do país eram outros e eles sabiam-no.

Amanhã inaugura-se uma exposição na galeria do edifício histórico do Diário de Notícias, em Lisboa, sobre a Censura antes do 25 de Abril. Os materiais são do Arquivo Ephemera, de Pacheco Pereira, e foi com o próprio historiador a servir de guia que visitei a "Proibido por Inconveniente" para uma reportagem.

O nome da exposição diz quase tudo: a Ditadura proibia o que lhe era inconveniente, fossem ideias de liberdade política, de ação sindical, de crítica à Igreja Católica ou de denúncia de pobreza. E abominava Vilhena, por os seus livros, em prosa ou cheios de desenhos, serem uma sátira social intolerável, muitas vezes classificada de pornográfica. Diga-se que Vilhena também abominava os censores, geralmente militares na reforma. Dedicou-lhes até cartoons e chegou a encher sacos com livros recém-impressos para lhes oferecer de modo a, dizia no gozo, não perderem tempo com buscas. Por três vezes a PIDE o mandou para a prisão, pois o respeitinho era muito bonito.

"Os mais furiosos despachos da Censura são contra o Vilhena. É quem realmente lhes toca as campainhas todas", diz Pacheco Pereira. Livros como História Universal da Pulhice Humana eram alvos a abater pela Ditadura portuguesa, e tanto faz que fosse com Salazar ou já com Caetano, tempos que no total duraram quase 48 anos, mas agora já menos do que aquele em que vivemos em democracia.

Jovem jornalista, conheci na redação do DN grandes admiradores de Vilhena. Na época, por volta do ano 2000, a revista que o escritor, cartoonista e humorista publicava chamava-se O Moralista. Ainda me ri de alguns desenhos, mas mesmo quem comprava a revista parecia fazê-lo sobretudo como homenagem ao corajoso opositor. Vilhena morreu em 2015, com 88 anos. Hoje, sem ser pelo valor histórico, talvez os seus desenhos não entusiasmem muito, ou, fora de contexto, até pareçam um pouco a tal pornografia que os censores acreditavam ver. Mas fica o seu contributo para que na sociedade portuguesa proibir já não seja a resposta ao que é inconveniente. No dia em que deixarmos de rir de nós mesmos é porque como país estamos muito mal.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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