O homem que ganha a vida com os nossos medos

Agora, volta a falar-se dele por causa de<em> It</em>, o filme que domina as receitas de bilheteira à escala mundial. É mais um capítulo na vida de um escritor que não pára de nos assustar há quatro décadas. Faz hoje 70 anos.
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Stephen Edwin King dificilmente poderia desejar uma melhor prenda pelo seu septuagésimo aniversário (nasceu em Portland, Maine, a 21 de setembro de 1947): o filme It, realizado por Andy Muschietti, que se tornou conhecido há uns anos com o assustador Mamã, encabeça a lista dos mais rentáveis nas bilheteiras de todo o mundo.

Para se fazer uma ideia, o orçamento da fita ficou pelos 35 milhões de dólares; só no fim de semana da estreia, no início deste mês, os espetadores pagaram 123 milhões nos Estados Unidos e 189 nos outros países. Não espanta, portanto, que It seja apontado como o salvador da honra de Hollywood, que registou um verão de desastres, muito aquém das expectativas.

O facto torna-se ainda assinalável por se tratar de um puro filme de terror, em que um demónio transfigurado em palhaço vai fazendo desaparecer as crianças de uma cidade chamada Derry, que passam a viver em pânico constante.

Nem sequer é a primeira vez que este enredo, tão típico dos gostos predominantes de King, salta das páginas para os ecrãs - o livro foi publicado em 1986 e, quatro anos depois, surgiu uma minissérie de dois episódios que conta a história. Desta vez, o êxito é tão assinalável que Muschietti e o estúdio já anunciaram uma sequela para 2018. Só com um ator garantido: Bill Skarsgard (um jovem ator sueco que conhecemos da série Anna Karenina e do recente filme Atomic Blonde) que vai voltar a assombrar muitos sonhos no papel do diabólico palhaço Pennywise, papel que, na referida minissérie, tinha sido entregue ao grande Tim Curry. De resto, Skarsgard parece ter caído nas boas graças do escritor, uma vez que já foi chamado para integrar o elenco da série Castle Tower, atualmente em filmagens e também baseada num escrito de King.

Esta "transferência" dos livros de Stephen King para longas e curtas-metragens, para telefilmes e séries de TV está longe de ser uma novidade: o primeiro filme adaptado de um "argumento" do autor tem mais de 40 anos (1976), tempo mais do que suficiente para se tornar um clássico. Chamava-se Carrie e foi realizado por Brian De Palma, com uma inesquecível Sissi Spacek. Em menos de uma década, a "transfusão" multiplicava-se, com uma sequência de registos que ficaram na memória dos amantes do género: Shining, de Stanley Kubrick; Cujo - O Novo Símbolo do Terror, de Lewis Teague; Zona de Perigo, de David Cronenberg; Christine: O Carro Assassino, de John Carpenter; O Poder do Fogo, de Mark L. Lester; e A Força do Mal, outra vez de Teague.

Omnipresente e múltiplo

Hoje, entre obras acabadas e filmes ou séries em produção, estão registados mais de 240 "empréstimos" pedidos à imaginação do homem que até ganhou direito a uma menção no Guiness Book Of Records como o autor mais adaptado ao cinema e à TV.

Já no que toca a livros vendidos, King é unanimemente reconhecido como o grande campeão de vendas de toda a literatura norte-americana: em 2006, tinha comprovadamente ultrapassado os 350 milhões de cópias vendidas. Ou seja, o equivalente a mais do que um livro vendido por cabeça no seu país, se apontarmos a população norte-americana para cerca de 330 milhões de pessoas.

De acordo com as contas disponíveis, Stephen King publicou até hoje 54 romances (alguns dos quais sob o pseudónimo Richard Bachman, com este apelido a chegar do nome de uma das suas bandas rock favoritas, os Bachman-Turner Overdrive), mais dez livros de contos curtos e cinco volumes de não-ficção. A esta saga, junta-se, dentro de cinco dias, mais um: The Sleeping Beauties, cujo cenário é uma prisão de mulheres e que, mais uma vez, não prima pela economia de meios, num total de 736 páginas. A particularidade é esta: foi escrito a meias com o filho, Owen. Também já está anunciado o livro que há de (pelo menos) estrear 2018: chama-se The Outsider.

Desde sempre, King chamou a si o sobrenatural, o que aterroriza, o místico, o sabor do sangue e da violência, o improvável e o impossível - em suma, aquilo que, mais até na leitura do que a partir dos filmes, nos causa um inquietante arrepio na espinha. Cria seres monstruosos, fugindo ou fintando os clichés mais correntes, de vampiros a zombies. Mas defende-se: "O apelo do terror é algo de consistente e de instintivo. As pessoas param para ver um acidente na estrada - essa é a base de tudo". Alega, também, uma componente terapêutica: "Quando não estou a escrever, tenho pesadelos. Ou seja, o que não salta cá para fora de uma maneira, fá-lo de outra. E a escrever ainda ganho dinheiro...".

Segundo uma estimativa da Forbes, o rendimento anual de King rondará os 40 milhões de dólares. Mas não se olhe precipitadamente para o homem de 1,93m de altura como um gigante avarento: um décimo dessa verba é entregue, todos os anos, a causas que o benemérito considere meritórias, de bibliotecas a bombeiros. Para incentivar os jovens cineastas, King já vendeu os direitos de muitos dos seus contos (os curtos, que novelas é outra história...) por um dólar cada, para servirem de lançamento a curtas-metragens. Exige apenas que os realizadores lhe ofereçam uma cópia do filme, que armazena numa prateleira com título: os "dollar babies".

Trabalhou como professor e numa casa de limpeza a seco. E gosta de contar o episódio de supermercado em que se cruzou com uma idosa, que o insultou por só escrever filmes "horrorosos". Ter-lhe-á perguntado a senhora porque não escrevia argumentos bonitos, como o de Os Condenados de Shawshank. King concluiu rapidamente que não valeria a pena explicar-lhe que tinha sido mesmo ele a escrever essa história - ela nunca acreditaria.

Apresenta-se assim: "Estou para a Literatura como um Big Mac para a Gastronomia". Modesto? Nem por isso: King sabe que, de quando em vez, um hambúrger é inevitável. E irresistível.

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