Quem foi?.Falando de Salazar, podemos considerar diversas figuras diferentes. Antes de mais o homem, o político católico sui generis, o "democrata-cristão", primeiro como católico estudantil, o seminarista que ingressa em 1900 no seminário de Viseu, abandonando a carreira eclesiástica uma vez recebidas as ordens menores, sendo depois eleito, em 1912, secretário do Centro Académico de Democracia-Cristã. De uma família rural humilde, sendo o pai feitor e a mãe doméstica, Salazar ensinaria no Colégio da Via Sacra, em Lisboa, sendo escolhido como secretário-geral do CADC (Centro Académico da Democracia-Cristã), seguindo a carreira universitária em Coimbra e ganhando em breve reputação como competente especialista em finanças. Já professor universitário, foi acusado de ter favorecido a conspiração monárquica nos finais do sidonismo, defendendo-se com a publicação de A Minha Defesa, evitando ser afastado da cátedra. Foi entretanto nomeado secretário-geral do Centro Católico derivado da Democracia-Cristã, sendo eleito, em 1921, deputado para o Parlamento por esse partido, em 1921, pelo círculo de Guimarães, voltando a candidatar-se em 1925 por Arganil, embora não ganhasse esta eleição..Devemos sublinhar que na política monárquica um episódio o interessou em especial, a ação de João Franco (1855-1929), cuja malograda ditadura apoiada por D. Carlos lhe despertou verdadeiro entusiasmo, como confessaria mais tarde, em 1929, depois de receber do falhado ditador uma carta de aplauso à qual respondeu, em 31 de março desse ano: "Há pouco mais de vinte anos um político que levantou em Portugal um brado de reação contra o descalabro da administração pública, e que o país na sua parte mais desinteressada e sã seguiu com mais do que carinho, com fé. Alguém obscuro, muito na verdura dos anos, sentiu então o contágio dessa fé. E pergunta agora por que desígnio providencial recebe agora a a carta de aplauso que então desejava escrever, se tivesse uma parcela de autoridade que V. Exa. tem.".O político católico.Salazar, além de obscuro simpatizante da falhada ditadura nos começos do século XX encabeçada por João Franco nos começos do século XX, com o apoio régio - e que valeria a este, como ao príncipe real, serem abatidos pela Carbonária no Terreiro do Paço, em 1908 -, seria sobretudo filiado no Centro Académico da Democracia-Cristã, ainda que esta versão lusa fosse distinta daqueles partidos que na Europa dos finais do século XIX e primórdios do século XX procurariam, em países como a França, a Bélgica, a Itália e outros, criar grupos católicos de inspiração mais progressista de cristianismo, em geral em oposição aos papas conservadores e corporativistas que, como Pio IX e Leão XIII, tinham buscado uma forma retrógrada de catolicismo atuante na polis. Já Salazar diverge desse aggiornamento de então, pois milita numa vertente que em nada se confunde com esses partidos democratas-cristãos europeus. Inspirado sobretudo na doutrina social da Igreja na sua fase retrógrada ultramontana do papa Pio IX , pontífice desde 1846 e a 1878 (autor da encíclica Quanta cura e do catálogo de erros conhecido como "Syllabus"), expressa na doutrina do corporativismo como fórmula para solução dos problemas envolvendo a classe operária, doutrina continuada com Leão XIII no interior da qual a forma mentis salazarista se moldara..Em seguida, solicitado pela ditadura militar instaurada em 1926, Salazar é chamado a Lisboa como o salvador financeiro dum Estado permanentemente falido, governaria Portugal como inamovível presidente do Conselho de Ministros desde 1932, quando é instaurando o Estado Novo até ao acidente cerebral de 1968 que o afastaria definitivamente do poder. Quarenta anos antes, em 27 de abril de 1928, Salazar afirmara com profética e soberba pertinácia: "Sei o que quero e para onde vou." Ao seu regime político ditatorial sucederia, após o seu acidente cerebral, em 1968, a continuação do regime ditatorial, agora dirigido por Marcelo Caetano, governo deposto pela Revolução de 1974..A carreira.Salazar nasceu no Vimieiro, perto de Santa Comba Dão, em 28 de abril de 1889 (note-se que Hitler nascera oito dias antes) e faleceu a 27 de julho de 1970, tendo sido ele quem de facto governou Portugal, durante quase quatro décadas do chamado Estado Novo, regime autoritário e pessoal que ele encarnou e que, apesar de manter a formalidade republicana, era na verdade uma monocracia pessoal autoritária, um regime no qual foram abolidas as liberdades de imprensa e de opinião, ao mesmo tempo que consolidava as finanças, essa velha maleita que perdurava desde o regime oitocentista liberal, agora equilibradas à custa de salários baixos e uma política governativa fundamentalmente autocrática, servida por uma polícia política implacável, o que se traduziria num país cronicamente subdesenvolvido e, por fim, nos seus derradeiros anos, obstinadamente apostado em manter uma guerra interminável para preservar, contra o Zeitgeist, o condenado império colonial africano, recusando sempre o nosso solitário autocrata qualquer forma de descolonização..Durante a fase da Segunda Guerra Mundial, Salazar manteve-se neutral, colaborando com os Estados Unidos graças à concessão de bases militares nos Açores, ao mesmo tempo que reconhecia e negociava com o III Reich o fornecimento de volfrâmio, mineral indispensável para o fabrico dos tanques alemães, e tivesse celebrado, com manifesta indignação da Grã Bretanha, com a cerimónia de homenagem de uma bandeira nazi arreada, com devido pesar a derrota do III Reich..Não estando envolvido no golpe do 28 de Maio de Braga, seria naturalmente chamado como especialista financeiro aos governos militares que então se sucederam, chefiados por chefes fardados de efémera duração - Mendes Cabeçadas, Carmona, Ivens Ferraz, Vicente de Freitas (aqui como ministro das Finanças), de novo Ivens Ferraz, Costa Oliveiras e, por fim, as durindanas entregaram-lhe a chefia da governação em 5 de julho 1932, cargo que acabaria por monopolizar até 1968. Entretanto, em 1932, criava o partido único União Nacional e em 1933 fazia aprovar a sua constituição, concebida pelo jurista católico madeirense, nacionalista e conservador Quirino Avelino de Jesus (1865-1935), autor de Nacionalismo Português (1932). Outras instituições de inspiração fascizante acolhidas pelo regime foram a Mocidade Portuguesa (1936) - modelo nazi traduzido em termos católicos caseiros - e a Legião Portuguesa (1937), dois modelos que mais caracterizadamente se assemelhavam com as fórmulas nazifascistas vigentes na época..República e monarquia.Monárquico desde as suas origens, Salazar - que uma vez confessou que gostaria de ter sido primeiro-ministro de um monarca absoluto -, tendo mumificado a forma republicana do seu regime ditatorial - recorde-se que era tido como subversivo dar vivas à República nas manifestações republicanas que ocorriam em público no dia 5 de Outubro - e chegou a sugerir aos círculos afetos aos sequazes miguelistas da restauração monárquica da realeza em Portugal, que na devida hora aceitaria restaurar o regime derrubado em 1910, a verdade é que, no começo dos anos 1960, por ocasião de uma prevista revisão constitucional, tornou-se claro que não haveria qualquer hipótese de restauração monárquica neomiguelista em Portugal, o que levou os partidários mais intransigentes desse sistema abolido a romperem com o salazarismo. Todavia não deixa de ser importante o grupo de intelectuais e burocratas de inspiração integralista lusitana que serviram o Estado Novo sobretudo na imprensa oficial, na publicação de artigos e obras doutrinárias, nomeadamente em digestos oficiais do regime, tal como foi o caso de João Ameal (1900-1982), autor do vade mecum intitulado Decálogo do Estado Novo (1934). A colaboração do ditador com os monárquicos vindos do Integralismo Lusitano teve meandros turbulentos que resumiríamos nos nomes de Rolão Preto (1893-1977) e Manuel Múrias, grupo monárquico seduzido pelo modelo nazi, o movimento Nacional-Sindicalista - ou Camisas Azuis - de entusiasmo efémero, ativo desde 1934 a 1936, que as forças do regime depressa desmantelaram, condenadas ao silêncio, ao desterro ou ao reingresso nas formas ortodoxas da nossa ditadura. Quanto aos demais Integralistas Lusitanos integrados no Estado Novo, Salazar serviu-se abundantemente dos setores que deste grupo se aproximavam mais da sua ditadura, entregando a alguns intelectuais e burocratas monárquicos cargos no aparelho intelectual da ditadura..Interessante seria ainda referir a simpatia especial que Salazar manifestou a um monárquico radical francês, acusado de colaboração com o ocupante nazi, Charles Maurras (1868-1952), ao qual o nosso ditador escreveu cartas de estima e alento quando aquele estava encarcerado. Convém sublinhar, no tocante a este homem que fundara o partido de direita monárquica autoritária, antimaçónica e antissemita, a Action Française, criada durante o caso Dreyfus, que ele aplaudira a queda da República francesa em 1940 e a ocupação nazi, como uma "divina surpresa" e cujas obras tinham sido postas no Index pela Igreja desde 1926, sendo condenado pelos tribunais franceses em 1945, acabando por ser indultado em 1952 e transferido para uma clínica em Tours. Entre estes maurrasianos franceses há que recordar um salazarófilo que encontrou pessoalmente o nosso ditador em 1938 e deixou uma obra intitulada Chefs (1939) onde o evoca com carinhoso desvelo. E não era a divisa do regime de Vichy encabeçado pelo colaborador Pétain quase a mesma da trilogia salazarista: "Travail, Famille, Patrie"?.Uma síntese do salazarismo.Creio que foi Fernando Pessoa quem fez o melhor retrato de Salazar - ele que escrevera dois poemas satíricos do nosso "tiraninho"(expressão que usou num desses poemas só publicados depois de 1974). Num outro texto póstumo, Pessoa dizia: "Inteligente sem maleabilidade, religioso sem espiritualidade, ascético sem misticismo, este homem é um produto duma fusão de estreitezas. A alma campestremente sórdida do camponês de Santa Comba só se alargou em pequenez pela educação do seminário, por todo o inumanismo livresco de Coimbra, pela especialização rígida do seu destino desejado de professor de Finanças. É um materialista católico (há muitos), um ateu nato no que respeita a Virgem." (1935). Seria difícil ser mais lucidamente justo e certeiro!.Historiador