"O Homem Elefante é um filme que devia ser reposto nas salas a cada quatro anos, porque o mundo fica melhor sempre que alguém o vê." Ler estas palavras do próprio David Lynch, na autobiografia (Espaço para Sonhar), sobre aquele que foi o seu primeiro grande sucesso comercial, tem um efeito curto-circuito por estes dias: será que ele se refere aos quatro anos dos ciclos eleitorais? Uma coisa é certa, (re)ver O Homem Elefante em plena campanha presidencial americana de 2020 faria um bem inestimável a muitos eleitores que desaprenderam valores sociais como a decência e a compaixão. Ou pura e simplesmente os bons sentimentos. Entenda-se: o cinema pode não salvar almas, mas ajuda a olhar para dentro..Chegando aos cinemas a 10 de outubro de 1980, o filme que abriu a Lynch as portas de Hollywood, depois do marginal Eraserhead (1977), foi um autêntico batismo de fogo, entre o entusiasmo da produção, as dores da rodagem em Londres e o êxito duplo de crítica e bilheteira, a que se somou as nomeações para oito Óscares (entre eles, melhor filme, realizador e ator)..O produtor Stuart Cornfeld, que lhe apresentara o argumento com a história do designado Homem Elefante, Joseph Merrick (1862-1890), tinha visto no jovem realizador americano o "humanista obscuro" capaz de infundir na realidade de época um olhar mais subterrâneo do que o clássico biopic. Daí que a personagem verídica maravilhosamente interpretada por John Hurt, debaixo de um trabalho espantoso de maquilhagem, não tenha habitado a mera recriação de cenários vitorianos, mas sim um imaginário de sombras, povoado de beleza feminina e pesadelos da era da máquina a vapor..John Merrick - assim chamado, em vez de Joseph, por erro do Dr. Frederick Treves, que escreveu as suas memórias - é primeiro visto num circo de aberrações à mercê da curiosidade popular, que paga para experimentar a visão chocante de um corpo humano deformado e submetido a um tratamento animalesco. Quando o dito cirurgião Frederick Treves (Anthony Hopkins) lhe põe os olhos em cima, numa visita negociada com o seu cruel proprietário, as lágrimas sobrepõem-se ao interesse científico, mas ainda assim será este último que o leva a exibir a descoberta aos seus pares da medicina, acabando Merrick por ser acolhido no hospital a título indefinido. Ao chegar, traz a cabeça escondida debaixo de uma máscara de linho, apenas com uma pequena fenda para conseguir ver e, ao revelar o semblante e o corpo de "monstro", não revela logo a extrema delicadeza, a bondade e a inteligência que lhe definem o trato. Ao início pensa-se mesmo que a criatura nem é capaz de falar; porém, surgirá a ocasião em que John Merrick se dá a conhecer na postura de um gentleman romântico que conquista a alta sociedade vitoriana....Este que se considera o filme de Lynch menos rigoroso no cânone de estranheza louvada pelos fãs, a sua pérola para o grande público, é ainda assim um objeto muito do seu autor, ou não fosse a história de uma figura pária e a abordagem do universo freak show matéria inequívoca da mente bizarra e sensível do realizador. Quem conseguiria como ele dar forma ao subconsciente dentro de uma narrativa convencional? Ou pôr em ação um "terrível encantamento" a par de algo "indefinidamente erótico", como escreveu a famosa crítica da The New Yorker Pauline Kael? Tal como Veludo Azul (1986) escava o submundo do sonho americano, O Homem Elefante destapa a comovente humanidade daquele que grita na vertigem do desespero: "Eu não sou um animal! Eu sou um ser humano!" E não, Lynch não cede ao sentimentalismo..Acima de todos os nomes que garantiram a existência de O Homem Elefante tal como o conhecemos está o (improvável) mestre da comédia Mel Brooks. E a sua entrada em cena tem qualquer coisa de fascinante, já que foi o próprio a mostrar um interesse efusivo no projeto desde a fase embrionária, mesmo sem conhecer David Lynch: "Sempre fui um intelectual em segredo, que adora Nikolai Gogol e Thomas Hardy, mas fui rotulado como um palhaço desde muito cedo, e sabia qual era o meu lugar." Ora, O Homem Elefante seria o primeiro filme não cómico produzido pela recém-criada Brooksfilms - e para se manter um "intelectual em segredo", ordenou que o seu nome não surgisse nos créditos para não influenciar as expectativas do público..Na altura em que estava prestes a assinar com o realizador desconhecido, organizou-se uma projeção de Eraserhead para o produtor ficar com uma ideia clara do sarilho em que se ia meter... À saída do visionamento, a sua reação não podia ser mais inesperada: abraçou Lynch e disse que o adorava porque ele era louco. Pronto, negócio fechado! A partir daí tomou a posição de constante defensor das decisões artísticas deste "Jimmy Stewart do planeta Vénus", como lhe chamou. Um apoio que foi crucial para Lynch, que precisava de se impor perante o seu extraordinário elenco de estrelas caídas do céu, ou não olhassem elas para o novato com uma mais ou menos tácita desconfiança, à exceção da atriz Anne Bancroft, mulher de Brooks, e o sempre amável John Hurt..Dos veteranos Sir John Gielgud e Wendy Hiller recebeu todo o respeito profissional, mas a hostilidade declarada de Anthony Hopkins, que via em Lynch o fulano vindo de Montana sem autoridade nenhuma para retratar a sociedade inglesa, foi dura de roer (muitos anos mais tarde, a rabugice seria emendada com uma carta de fã da parte de Hopkins). A verdade é que poucos filmaram a Londres vitoriana da glória industrial com tanto sentido de atmosfera e rugosidade, aproveitando o que no início da década de 1980 restava de esquinas com traça antiga. O refinado preto e branco do diretor de fotografia Freddie Francis foi a coroação dessa busca do pormenor..Dos desafios da rodagem, a maior frustração prendeu-se com a maquilhagem, que visava reproduzir a condição física de John Merrick. David Lynch fechou-se durante semanas numa garagem a tentar conceber um modelo com glicerina e látex que não deu em nada. Antes de cada entrada no plateau, John Hurt acabaria por passar sete horas na cadeira de maquilhagem, nas mãos de Christopher Tucker, cujo brilhante trabalho mereceu um protesto dirigido à Academia de Hollywood por não o homenagear - um gesto que fica para a história pois motivou, no ano seguinte, a criação da categoria que premeia esses verdadeiros artesãos..Pelos 40 anos de O Homem Elefante, a StudioCanal lançou uma edição especialíssima em DVD e Blu-ray, com vários extras e um sofisticado restauro 4K supervisionado por Lynch. Talvez se possa seguir o conselho de rever a cada quatro anos, mesmo que no sofá de casa...