O fim do mundo segundo Heiner Müller

Jorge Silva Melo volta a encenar "Quarteto", Müller escreveu inspirando-se em "Ligações Perigosas"
Publicado a
Atualizado a

Pensamos em Ligações Perigosas e lembramo-nos dos jogos palacianos da marquesa de Merteuil e do visconde de Valmont. Se tivermos que lhes dar rostos, é bem provável que sejam o de Glenn Close e John Malkovich, os atores que protagonizaram o famoso filme de Milos Forman (1988). Pensamos em jogos de sedução e de manipulação e em Michelle Pfeiffer como a desejada madame de Tourvel. Para ver Quarteto, a peça que Heiner Müller escreveu inspirado em Ligações Perigosas e que Jorge Silva Melo agora encena, será bom saber de antemão quem são estas personagens e o que as move. Mas convém depois esquecer tudo o resto.

O encenador deixa o aviso: "Isto não é uma adaptação do Laclos como é a peça do Christopher Hampton. Em termos musicais eu diria que são variações sobre o tema do Laclos. Ele pega nas personagens do Laclos que define mais ou menos no primeiro ato e depois põe-se a inventar. O próprio Heiner dizia: eu não fui reler a peça Ligações Perigosas, lembrava-me mais ou menos, porque eu gosto é de pegar num texto como os miúdos pegam numa boneca, desmontá-la toda e ver que lá dentro só há serradura e porcaria, e depois pego nisso para fazer o meu texto."

Silva Melo sabe do que fala. Conheceu bem Heiner Müller e lembra-se das noites passadas em Berlim, em gargalhadas até quase de manhã. Recorda-o como "um homem caloroso, muito terno e divertidíssimo. Mas também muito lúcido e de uma violência enorme. A sua escrita é brutal e afiada".

Quarteto foi escrita em 1979, após A Missão. Antes da queda do Muro de Berlim: "O Heiner vivia do lado de lá e era um opositor à democracia mas também era muito descrente da unificação da Alemanha que veio a seguir", lembra Jorge Silva Melo.

A primeira vez montou este texto, em 1988, no Acarte, com interpretações de Glicínia Quartim e dele próprio, Jorge deteve-se no jogo da manipulação de Merteuil e Valmont. Desta segunda vez, estava mais desperto para outras leituras: "Só agora é que percebo que isto é uma peça de um homem no fim da virilidade, ele tinha 60 anos. A primeira mulher tinha-se suicidado com um fogão a gás, e ele refere isso no texto. A mulher jovem está a abandoná-lo. Esta é uma peça sobre a noite dos corpos, o fim da libertinagem, o fim do amor livre, o fim da potência, esses fantasmas todos que estão ali. No romance de Laclos ela vai ser abandonada com sífilis, aqui é o cancro, também a doença mudou."

O cenário imaginado por Heiner Müller é "impossível", admite o encenador. Teria de ser, ao mesmo tempo, um salão do século XVIII, antes da Revolução Francesa, e "um bunker depois da Terceira Guerra Mundial". "O salão é o princípio do nosso mundo moderno, da época das luzes. Mas o bunker é já o fim do mundo." E é aí, exatamente aí, que se desenrola este jogo entre Merteuil e Valmont. Porque é de um jogo que se trata.

Na sala do Teatro da Politécnica, Ivo Canelas e Crista Alfaiate são os atores que dão voz a Merteuil e a Valmont. Mas há um momento em que Valmont é Merteuil e em que Merteuil é Valmont. E há um momento em que ele é a senhora de Tourvel, e outro em que ela é a jovem Volange. A manipulação é levada ao limite pelo autor. Não há bons nem maus, não há inocentes. Quem quer seduzir quem? Quem está a ser seduzido? Tudo é um jogo. A própria peça é um jogo e os espectadores são convidados a jogar. "É uma dança da morte", diz Silva Melo. "Amor, morte e sexo é a trilogia que está aqui em cena. Para ele, nesta altura, a libertação é quase sempre já a morte." E, por isso, escolheu a canção dos Rolling Stones, Sympathy for the Devil, para marcar as pausas entre as cenas.

No dia 30 de dezembro, passaram 20 anos da morte de Heiner Müller. Jorge Silva Melo tenciona revisitar a sua obra mais uma vez ainda este ano: Hamletmachine (Máquina Hamlet) tem estreia prevista para novembro.

Quarteto

De Heiner Müller

Encenação de Jorge Silva Melo. Com Ivo Canelas e Crista Alfaiate

Teatro da Politécnica, Lisboa

Estreia amanhã. Até 13 de fevereiro.

Bilhetes: 10 euro

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt