Uma herança febrilmente homogeneizada por vários mitos e monoteísmos - e consolidada nos anos da Guerra Fria, durante os quais parecia de facto a hipótese mais plausível - a catástrofe súbita e irrevogável tornou-se o atalho estenográfico de eleição para imaginar o colapso civilizacional. O asteróide chega e os efeitos especiais são activados. A bomba explode e o cenário é incinerado. A onda gigante arrasta tudo à sua frente. O protagonista acorda de manhã e descobre que as ruas estão pejadas de zombies. É talvez um acidente imaginativo inevitável que este modelo se tenha confundido com o modelo para criar distopias literárias e cinematográficas, que (com raras excepções, como Children of Men), são demasiado drásticas para parecerem extrapolações do presente em vez de realidades alternativas, e parecem incapazes de reconhecer que, historicamente, campos de extermínio costumam coexistir com esplanadas onde as pessoas continuam a beber café..Um dos aspectos mais originais do romance The Peripheral (2014) foi o esforço de William Gibson para criar um modelo diferente. O jackpot desse livro é um apocalipse sistémico e multicausal que se prolonga por várias décadas. Nada catastrófico acontece (o asteróide não chega, a bomba não explode). Minicalamidades vão-se sucedendo, uma de cada vez, ou várias ao mesmo tempo - secas, colheitas devastadas, resistência a antibióticos, epidemias locais - sem efeitos especiais barrocos, e sem que o progresso noutras áreas deixe de acontecer. "Não houve uma qualquer inovação heróica, mas inovações graduais: fontes de energia mais baratas, novas drogas para substituir os antibióticos, nanotecnologia, novas formas de produção alimentar (...) tudo, não importa quão profundamente fodido, era constantemente iluminado pelo Novo." Como cantavam os Talking Heads, enquanto as coisas caíam aos bocados, ninguém prestou muita atenção..Years and Years, uma co-produção da HBO e da BBC (disponível na HBO Portugal), adopta este modelo: não imagina um fim do mundo tradicional, mas um resvalar gradual para uma realidade que só o benefício do tempo narrativo torna irreconhecível. Ao longo de seis episódios de uma hora, recria 15 anos seguidos (a série começa em 2019 e termina em 2034), usando como lente os Lyon, uma família de Manchester cujas peripécias domésticas acompanham as convulsões que fazem desaparecer o mundo que conheciam, e inventar um novo no seu lugar..Mais subtil do que Black Mirror na sua relação com a tecnologia, Years and Years não estrutura cada episódio à volta de uma única disrupção, preferindo adoptar o livro de estilo da ficção científica clássica, integrando as "novidades" no enredo em breves exposições tangenciais e somando os respectivos débitos e créditos (por um lado inventou-se uma cura para a degeneração macular; por outro, deixou de haver borboletas e bananas: uma chatice)..O primeiro episódio começa com uma explosão nuclear na China. No segundo, a vida continua. A mesma assimilação das disrupções vai sendo mantida nos episódios seguintes (meses sucessivos de chuva, implosão do sistema bancário, apagões, epidemias, ataques terroristas, etc.) O joker no baralho é Vivienne Rook. Uma combinação dos vários saltimbancos que redesenharam a paisagem política recente, Rook é a populista enquanto criatura televisiva, que emerge num contexto em que informação e entretenimento, ao assumirem as mesmas formas e serem reproduzidas nos mesmos meios, começam a exigir os mesmos critérios intuitivos de avaliação. A personagem também tem os seus precedentes culturais - o Howard Beale de Network (1976), ou o político interpretado por Warren Beattie em Bulworth (1998): o rebelde sem travões que explode o tecido de lugares-comuns e banalidades do discurso aceitável e é catapultado para a notoriedade por um momento "viral". Interrogada sobre a situação na Palestina numa espécie de Prós e Contras, Vivienne Rook responde com um "estou-me a cagar para isso", explicando que aquilo que a preocupa é a recolha de lixo na sua rua. O incidente promove-a de hashtag a chefe de Estado em apenas três episódios..O que seria um gesto narrativo ousado e presciente há cinco anos, agora parece o excerto de um documentário. Mas a série dramatiza com moderada competência a nossa específica vulnerabilidade colectiva a este tipo de discurso: a reacção imediata de quase todos os membros da família é a gargalhada espontânea e entusiasmada com que respondemos ao desconfortavelmente inesperado..Onde a série é menos equilibrada é a resistir à tentação de se render aos próprios problemas que tenta diagnosticar. Uma das suas escolhas dramáticas deliberadas (e bem-sucedidas) é apresentar as múltiplas minicalamidades como eventos mediados que os protagonistas vêem na televisão e periféricos diversos, e aos quais reagem conversando e comentando - em pessoa, por videochamada, por sms. É uma forma expediente de representar a dissonância dos últimos anos, em que as possibilidades tecnológicas que permitem a sensação de cobertura permanente acabam por criar uma sensação de crise permanente: a ansiedade de baixa frequência em que cada crise se dissolve na seguinte. Um refrão repetido em vários momentos é um epicédio pelos tempos em que "a política era aborrecida" e "as coisas eram mais simples". É, no entanto, possível que a tensão entre estas duas nostalgias esteja na raiz do apelo das Vivienne Rooks, que prometem um regresso à simplicidade pelo lado menos "aborrecido" possível..A tentação mais negativa a que Years and Years não resiste é ao discurso de síntese, moldado pelo "senso comum", dando uma explicação fácil de assimilar. A cena-chave do último episódio é um veredicto geracional proferido pela matriarca dos Lyon: "Tudo isto. Os bancos. O governo. A América. Todas as coisas que correram mal. A culpa é toda vossa. (...) Sabem porquê? Por causa da T-shirt de um euro. Não conseguimos resistir. Vemos uma T-shirt a um euro e pensamos, que pechincha. (...) O funcionário da loja recebe cinco cêntimos pela T-shirt e um camponês qualquer recebe 0,01 cêntimos e nós achamos que está bem. Pagamos o nosso euro e aceitamos o sistema." Quando a crítica se alarga às caixas automáticas nos supermercados, alguém menciona que ninguém gosta dessas caixas. "Sim, mas não fizeram nada, pois não? Quando começaram a aparecer, fizeram boicotes? Escreveram cartas de protesto? Foram fazer compras a outro lado? Não. Resmungaram e continuaram com as vossas vidas.".É um discurso superficialmente eloquente, concebido para ser tão viral como a saída politicamente incorrecta de Rook, e com o mesmo conteúdo: próximo do zero. A viralidade foi, no entanto, testada e validada em tempo real. A conta de Twitter da BBC colocou o discurso a circular e acumulou dezenas de milhares de interacções. As respostas foram quase consensualmente entusiásticas: "É isto mesmo", "Grande verdade", "O melhor discurso político que ouvi na minha vida", "Quando é que posso votar nela?", etc. A própria série endossa esta predisposição para aceitar a diatribe condensada como análise esclarecedora, e duplica essa cegueira localizada com um desenlace que arranca a gargalhada mais genuína dos seis episódios: o milagre civil que cancela a distopia é permitir que muitas pessoas vejam a mesma coisa ao mesmo tempo na televisão. Tem tudo para correr bem..Escreve de acordo com a antiga ortografia.