"O filme surgiu logo com cara de protesto"
No meio da tela em branco nasce um ponto. E desse ponto uma aventura de muitas formas, cores e movimento. Um menino de t-shirt às riscas vermelhas e brancas prende-nos o olhar, e com ele seguimos mundo fora - sim, o mundo cabe todo ali - atrás da sua música de esperança. O filme que nos transporta nesta viagem de sensações e sonoridades latinas não engana, é uma produção brasileira, O Menino e o Mundo, mas isso não impediu o realizador, Alê Abreu, de lhe dar uma expressão universal. A busca pelo paradeiro do pai é a nota de lançamento que leva esta criança a conhecer as adversidades do globo, a lógica industrial, e a limitação dos sonhos. Um trabalho com tanto lá dentro só podia chamar as atenções, e, por isso, esteve nomeado para o Óscar de Melhor Animação.
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O que representou para si a nomeação ao Óscar?
Por um lado, o holofote sobre o filme estimulou o contacto com produtores de outros países, e facilitou os meus novos trabalhos; por outro, abrangeu todo o cinema de animação brasileiro, que é uma indústria em formação.
Há uma universalidade na narrativa do menino à procura do pai, mas aqui parece haver também um sentido particular...
O facto de ser uma história universal facilitou a caminhada do filme, mas também descobri mais tarde que essa busca do pai é bastante recorrente na cinematografia latino-americana, sobretudo no Cinema Novo brasileiro e nos anos 1960-70. Tem uma simbologia forte - o pai como pátria, como algo maior que nos sustenta e nos dá uma noção de quem somos. Então, a busca do pai tem aqui já embutido um fundo político e social.
O traço simples, artesanal, foi uma opção para contrastar com o cenário normalizado em que tem caído o cinema de animação?
O filme já nasceu com esse olhar anti-industrial, particularmente, de uma pesquisa que eu estava fazendo para um documentário [Canto Latino], que procurava entender o panorama da formação dos países latino-americanos. E todos passaram por momentos históricos muito parecidos - ditaduras, movimentos sociais, relações com a economia global... Então o filme surgiu logo com essa cara de protesto. Quando, nos diários de viagem, encontrei a figura rabiscada desse menino, o ato do rabisco já dizia muito mais do que o próprio personagem. E então decidi dar a mão a esse menino e tentar encontrar a história dele, explorando a ideia de fazer um filme em contramão ao que havia no mercado.
Isso quer dizer que o menino também é autor?
Eu sempre tive a sensação de não ser o realizador do filme. Simplesmente me entreguei ao personagem que inventei, e era partindo dele que todas as decisões se tomavam.
Voltando à questão do desenho de traço simples, este parece veicular maior carga emocional...
O desenho dá as mãos para o conteúdo, para aquilo que se quer transmitir. O que interessa é mesmo essa relação subtil, poética, entre a forma e o conteúdo.
Tem influências cinematográficas, sem ser da animação, que estejam presentes no filme?
Ao longo do processo de produção do Menino e o Mundo, descobri, com a merecida profundidade, o trabalho de Andrei Tarkovsky, e acho que isso me influenciou muito. Não sei se é muito identificável, mas sei que de alguma forma me tocou... Consigo localizar momentos que acabam por ser puras referências, como aquele em que a câmara atravessa uma janela que está batendo, já no final do filme, e vai encontrar outra situação fora da casa. Isto é uma découpage muito tarkovskiana.
E também o plano do menino com a árvore, como n"O Sacrifício, último filme de Tarkovsky.
Olha só! Esse, eu não havia pensado! Totalmente.
As personagens do filme não têm um idioma inteligível e, no entanto, não se perde nada. Porque escolheu a ausência de palavra?
O Menino e o Mundo fala de questões tão essenciais, que não cabem em palavras. Um texto aqui empobreceria demasiado o tema. A infância é o momento em que o texto não existe com a força com que existe no mundo dos adultos. Para a criança, uma árvore é cor e sensação, antes de ser chamada árvore. Quando se torna uma palavra é quando ela perde o seu sentido mais profundo.
Face à crise política que o Brasil atravessa, a arte deste filme acaba por ter um eco de consciência.
A arte é um olho de olhar na frente, e de alguma forma os artistas captam essas energias que estão no nosso inconsciente coletivo, e transformam isso em poesia.