O Festival de Marselha continua a ser amigo do cinema português

Rita Azevedo Gomes, Leonor Noivo e Jorge Cramez são as presenças portuguesas no FID-Marselha, festival de cinema do real. Um festival marcado por obras de gesto político radical.
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"Não há no mundo nenhum festival como este", confidenciava ontem Bertrand Bonello ao DN, um dos homenageados deste ano do FID - Festival Internacional de Cinema de Marselha, o principal festival do cinema do real na Europa. "É um festival que em vez de se limitar a selecionar filmes propõe uma relação de interrogação com eles. Aqui vai-se mais longe no debate, o espetador não fica no lugar de apenas dizer que gosta ou que não gosta", prossegue o realizador de Saint Laurent (2014) ) e Apollonide- Memórias de um Bordel (2011), que garante já ter sido convidado para o próximo LEFFEST, em Lisboa e Sintra.

As palavras do cineasta francês fazem sentido: o arranque desta edição número 30 expressou-se por uma visão engajada do mundo e da raça humana. São filmes que provavelmente não veremos nos cinemas de circuito comercial e que apelam para uma liberdade formal sem receios do mais drástico dos ensaios. Filmes que são muito mais do que obras cartografadas do documentário ou da ficção. O critério no FID passa por consagrar um espaço para uma fronteira ténue entre ativismo audiovisual e uma possibilidade de poesia. Por isso, é comum em Marselha aparecerem curtas ou longas que fazem da experimentação o seu desejo. Do ecletismo à audácia, os programadores não enjeitam o poder político que o cinema ainda tem. Nesse sentido, em 2019, seja em que formato for, o real aqui é celebrado para dar voz às minorias.

Mas se na mistura está o ganho, a homenagem-retrospetiva a Bonello serve para estar ao lado de uma proposta que desde a década de 90 tem incidido num cinema de herança "punk", profundamente francês e moderno. Um cinema de atores mas com um andamento temporal que reflete uma mecânica de câmara muito singular. "Para mim é tudo menos uma rotina este tributo. Diria mesmo tratar-se de um prazer. Apesar de não ficar para ver os filmes, faço questão de os apresentar. Estas retrospetivas servem para surgirem questões em torno da minha obra. Creio que é importante falar-se do nosso passado e, ao mesmo tempo, pensar-se no futuro, revela.

Se lá fora há calor, turistas em barda e argelinos na rua com bandeiras da sua nação a torcer pela selecção na CAN (torneio africano de futebol da FIFA), as sessões no velhinho Varietés e no moderníssimo MUCEN têm excelente taxa de frequência e um público muito jovem e multicultural. Um público que aplaudiu o brasileiro Tremor Iê, de Elena Meirelles e Livia de Paiva, distopia em Fortaleza que imagina um novo regime de terror policial no futuro próximo. Mas esta pedrada de choque feita com lésbicas (a atriz Lila M. Salú preferiu o tema "sapatão) e negras, de fantasia parece não ter nada, focando histórias verdadeiras de mulheres mortas pela polícia ou milícias... Marielle Franco é referida e não falta o tom de fúria assumidamente feminista. O cinema brasileiro a servir de resistência ao regime de Bolsonaro, aqui descrito como parte de um golpe de Estado...

Mas o FID tem tido sempre uma bela história de amor com o cinema português. Raposa, de Leonor Noivo, tem este fim de semana sua estreia mundial e está em competição. Meditação sobre o papel da verdade no plano teórico da ficção através de uma história que pode ser real da atriz Patrícia Guerreiro. São quarenta minutos de mágoa sentida em rota para uma fronteira de algo de novo em composição de retrato psicológico. A cumplicidade entre a atriz e a realizadora é coisa que só o cinema consegue criar. Potente, no mínimo...

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