Tal como o desejo erótico, o medo é uma daquelas emoções universais que se fragmenta em inúmeras idiossincrasias no ponto de chegada. Além de ser contextual, depende também muito da maneira como um elemento exterior interage com o nosso repositório pessoal de fobias e atavismos. Isto, pelo menos, em teoria. Na prática (a prática, para este efeito, é definida pelo somatório de explorações ficcionais do "medo" no pequeno e no grande ecrã), a coisa mais assustadora do mundo é aparentemente uma figura feminina magra, de cabelos compridos e desgrenhados, a cambalear aos solavancos na direcção da câmara. Pode parecer redutor, mas as provas acumuladas não enganam: desde que foi popularizada pelo filme Ring em 1998, esta aparição específica marca o ponto em filmes e séries ocidentais com tamanha regularidade que já se tornou uma presença familiar, tão reconfortante como um peluche de infância. É possível que seja a exportação japonesa mais bem-sucedida desde o Toyota Corolla e o circuito integrado..Na verdade, o fenómeno é apenas mais uma manifestação do que podemos chamar a Lei do Afunilamento de Convenções Genéricas: quanto maior a percepção de que um determinado tropo está exausto, e mais frequentes os esforços para o desconstruir ou reinventar, mais breve é o espaço de tempo até a sua utilização voltar a parecer boa ideia. Como subcategoria de "fantasma", a rapariga desgrenhada, com o cabelo a cobrir-lhe metade do rosto, ocupa actualmente um cargo indefinido entre primeiro e último recurso, a meio caminho entre paródia e maneirismo. E a categoria mais ampla a que pertence enfrenta problemas semelhantes..Ao ser confrontado com The Haunting of Hill House, saído há poucas semanas da linha de produção da Netflix, o apreciador de histórias de fantasmas arrisca-se a chegar a uma conclusão hiperbólica: a espécie humana deixou de saber contar histórias de fantasmas (no plural) e passou a saber contar apenas uma: a mesma, sempre. A conclusão é reforçada pelo facto de a série ser uma suposta adaptação daquela que é a melhor história de fantasmas do século XX - o romance de Shirley Jackson com o mesmo título - o que nem assim impediu os criadores de se sentirem obrigados a deformar selectivamente o material de origem até ao ponto em que só um punhado de nomes sobrevive..Às primeiras impressões, o enredo parece querer adoptar o subtexto habitual das ficções sobre casas assombradas: ocorrências sobrenaturais como reflexo de ansiedades materiais. Uma família (pai, mãe, cinco filhos menores) muda-se para uma mansão vitoriana com o propósito explícito de fazer obras de remodelação e vendê-la de seguida. As coisas não correm bem, e entre janelas partidas, infestações de bolor e atrapalhações logísticas diversas, o plano para realizar mais-valias a curto prazo no mercado imobiliário desmorona-se com a velocidade de mil Robles..Mas a casa em si nunca assume a mesma centralidade que Shirley Jackson lhe confere no livo, o que é uma de muitas oportunidades perdidas. Hill House é uma presença genuinamente inquietante, uma bizarria arquitectónica onde nada faz grande sentido geométrico, onde os ângulos parecem ter um grau a menos ou a mais do que o esperado, onde o aspecto exterior não tem qualquer relação com o espaço interior. Esse potencial para a desorientação seria um desafio interessante para uma abordagem visual, mas a série descarta-o quase por completo, e prefere apostar no estilo de desorientação habitual da televisão de prestígio: temporal em vez de espacial, retalhando a história em duas linhas cronológicas distintas, que se vão contaminando mutuamente, e adoptando uma perspectiva narrativa que por vezes se recusa a discriminar entre ambas..A outra alteração estrutural é igualmente relevante e reveladora. No livro de Jackson, as personagens são quatro desconhecidos, convidados para passar uma temporada na casa por um pseudopsicólogo interessado na reputação de domicílios assombrados e que escolheu Hill House para fazer trabalho de campo. A série troca-os pela unidade biológica por excelência, convertendo as dinâmicas próprias de um grupo de estranhos enclausurados nas interacções íntimas de uma família problemática e disfuncional. Esta será talvez a maior deformação imposta ao material de origem, onde uma família repressiva era precisamente aquilo de que a protagonista, Eleanor, tentava escapar..Apesar de ambiguidades locais, o livro nunca nos deixa na dúvida sobre a natureza sobrenatural dos acontecimentos, mas a raiz do horror nas ficções de Shirley Jackson (tal como nas de Henry James), é sempre menos espectral, ou até psicológica, do que social: o pavor do preconceito, do gesto rude, do protocolo quebrado, da crueldade negligente, do ostracismo súbito. Parte do desconforto do romance é gerado por equívocos na análise de comportamentos de terceiros, pela incapacidade da protagonista em negociar interacções simples e pela sua receptividade crescente a deixar-se assombrar pela casa, que lhe começa a parecer um destino mais simples do que aturar outras pessoas..A série aposta muito mais na ambiguidade das figuras espectrais que nos apresenta, uma consequência inevitável da linhagem técnica a que pertence, pois se há coisa que a televisão banalizou nos últimos anos foi a "aparição" não sobrenatural (todos os fantasmas vistos por Tony Soprano, Don Draper e pelas personagens de Six Feet Under). Os fantasmas de The Haunting of Hill House são tratados como literalizações visuais de circunstâncias mentais: ansiedade, stress pós-traumático, problemas por resolver. É um dos hábitos mais desconcertantes e contraproducentes do género nas últimas décadas, mas que se generalizou ao ponto de passar por profundidade narrativa: substituir a ideia de fantasma enquanto anomalia empírica desestabilizadora (traduzindo uma discrepância entre uma presunção lógica e aquilo que é detectado pelos sentidos) por uma entidade que, por mais desgrenhados que sejam os seus cabelos, tem uma agenda e reclamações legítimas, transformando o enredo numa mistura de sessão terapêutica e concertação social. O último dos dez episódios da série, que consiste essencialmente em obrigar as personagens a aprender o significado errado dos nove episódios anteriores, é o corolário lógico deste lugar-comum. As sequências finais chegam à brilhante conclusão de que tanto a casa assombrada como as vítimas que assombra só precisavam de um abraço..Com os valores de produção, textura visual densa, construção paciente e cuidadosa, e virtuosismo técnico a que a Netflix nos habituou, The Haunting of Hill House acaba por ser (como o recente Maniac), mais uma exibição de um superavit de competência que não sabe muito bem como se gastar..Cronista. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Tal como o desejo erótico, o medo é uma daquelas emoções universais que se fragmenta em inúmeras idiossincrasias no ponto de chegada. Além de ser contextual, depende também muito da maneira como um elemento exterior interage com o nosso repositório pessoal de fobias e atavismos. Isto, pelo menos, em teoria. Na prática (a prática, para este efeito, é definida pelo somatório de explorações ficcionais do "medo" no pequeno e no grande ecrã), a coisa mais assustadora do mundo é aparentemente uma figura feminina magra, de cabelos compridos e desgrenhados, a cambalear aos solavancos na direcção da câmara. Pode parecer redutor, mas as provas acumuladas não enganam: desde que foi popularizada pelo filme Ring em 1998, esta aparição específica marca o ponto em filmes e séries ocidentais com tamanha regularidade que já se tornou uma presença familiar, tão reconfortante como um peluche de infância. É possível que seja a exportação japonesa mais bem-sucedida desde o Toyota Corolla e o circuito integrado..Na verdade, o fenómeno é apenas mais uma manifestação do que podemos chamar a Lei do Afunilamento de Convenções Genéricas: quanto maior a percepção de que um determinado tropo está exausto, e mais frequentes os esforços para o desconstruir ou reinventar, mais breve é o espaço de tempo até a sua utilização voltar a parecer boa ideia. Como subcategoria de "fantasma", a rapariga desgrenhada, com o cabelo a cobrir-lhe metade do rosto, ocupa actualmente um cargo indefinido entre primeiro e último recurso, a meio caminho entre paródia e maneirismo. E a categoria mais ampla a que pertence enfrenta problemas semelhantes..Ao ser confrontado com The Haunting of Hill House, saído há poucas semanas da linha de produção da Netflix, o apreciador de histórias de fantasmas arrisca-se a chegar a uma conclusão hiperbólica: a espécie humana deixou de saber contar histórias de fantasmas (no plural) e passou a saber contar apenas uma: a mesma, sempre. A conclusão é reforçada pelo facto de a série ser uma suposta adaptação daquela que é a melhor história de fantasmas do século XX - o romance de Shirley Jackson com o mesmo título - o que nem assim impediu os criadores de se sentirem obrigados a deformar selectivamente o material de origem até ao ponto em que só um punhado de nomes sobrevive..Às primeiras impressões, o enredo parece querer adoptar o subtexto habitual das ficções sobre casas assombradas: ocorrências sobrenaturais como reflexo de ansiedades materiais. Uma família (pai, mãe, cinco filhos menores) muda-se para uma mansão vitoriana com o propósito explícito de fazer obras de remodelação e vendê-la de seguida. As coisas não correm bem, e entre janelas partidas, infestações de bolor e atrapalhações logísticas diversas, o plano para realizar mais-valias a curto prazo no mercado imobiliário desmorona-se com a velocidade de mil Robles..Mas a casa em si nunca assume a mesma centralidade que Shirley Jackson lhe confere no livo, o que é uma de muitas oportunidades perdidas. Hill House é uma presença genuinamente inquietante, uma bizarria arquitectónica onde nada faz grande sentido geométrico, onde os ângulos parecem ter um grau a menos ou a mais do que o esperado, onde o aspecto exterior não tem qualquer relação com o espaço interior. Esse potencial para a desorientação seria um desafio interessante para uma abordagem visual, mas a série descarta-o quase por completo, e prefere apostar no estilo de desorientação habitual da televisão de prestígio: temporal em vez de espacial, retalhando a história em duas linhas cronológicas distintas, que se vão contaminando mutuamente, e adoptando uma perspectiva narrativa que por vezes se recusa a discriminar entre ambas..A outra alteração estrutural é igualmente relevante e reveladora. No livro de Jackson, as personagens são quatro desconhecidos, convidados para passar uma temporada na casa por um pseudopsicólogo interessado na reputação de domicílios assombrados e que escolheu Hill House para fazer trabalho de campo. A série troca-os pela unidade biológica por excelência, convertendo as dinâmicas próprias de um grupo de estranhos enclausurados nas interacções íntimas de uma família problemática e disfuncional. Esta será talvez a maior deformação imposta ao material de origem, onde uma família repressiva era precisamente aquilo de que a protagonista, Eleanor, tentava escapar..Apesar de ambiguidades locais, o livro nunca nos deixa na dúvida sobre a natureza sobrenatural dos acontecimentos, mas a raiz do horror nas ficções de Shirley Jackson (tal como nas de Henry James), é sempre menos espectral, ou até psicológica, do que social: o pavor do preconceito, do gesto rude, do protocolo quebrado, da crueldade negligente, do ostracismo súbito. Parte do desconforto do romance é gerado por equívocos na análise de comportamentos de terceiros, pela incapacidade da protagonista em negociar interacções simples e pela sua receptividade crescente a deixar-se assombrar pela casa, que lhe começa a parecer um destino mais simples do que aturar outras pessoas..A série aposta muito mais na ambiguidade das figuras espectrais que nos apresenta, uma consequência inevitável da linhagem técnica a que pertence, pois se há coisa que a televisão banalizou nos últimos anos foi a "aparição" não sobrenatural (todos os fantasmas vistos por Tony Soprano, Don Draper e pelas personagens de Six Feet Under). Os fantasmas de The Haunting of Hill House são tratados como literalizações visuais de circunstâncias mentais: ansiedade, stress pós-traumático, problemas por resolver. É um dos hábitos mais desconcertantes e contraproducentes do género nas últimas décadas, mas que se generalizou ao ponto de passar por profundidade narrativa: substituir a ideia de fantasma enquanto anomalia empírica desestabilizadora (traduzindo uma discrepância entre uma presunção lógica e aquilo que é detectado pelos sentidos) por uma entidade que, por mais desgrenhados que sejam os seus cabelos, tem uma agenda e reclamações legítimas, transformando o enredo numa mistura de sessão terapêutica e concertação social. O último dos dez episódios da série, que consiste essencialmente em obrigar as personagens a aprender o significado errado dos nove episódios anteriores, é o corolário lógico deste lugar-comum. As sequências finais chegam à brilhante conclusão de que tanto a casa assombrada como as vítimas que assombra só precisavam de um abraço..Com os valores de produção, textura visual densa, construção paciente e cuidadosa, e virtuosismo técnico a que a Netflix nos habituou, The Haunting of Hill House acaba por ser (como o recente Maniac), mais uma exibição de um superavit de competência que não sabe muito bem como se gastar..Cronista. Escreve de acordo com a antiga ortografia.