O fabuloso destino de Kechiche

Estreado em 2017 no Festival de Veneza, <em>Mektoub, Meu Amor</em>: Canto Primeiro chega finalmente aos cinemas. Crónica romanesca inundada de transpiração sensual, como sempre no cinema de Abdellatif Kechiche.
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Crónica de amores de verão com a habitual câmara sexual e sensual de Abdellatif Kechiche, neste momento o mais consagrado dos cineastas franceses. Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro é um desenvolvimento natural dos procedimentos da causa de A Vida de Adèle: filmar o amor sem filtros. E o amor para este grande cineasta é entrar pelo suor do sexo, pelo paladar da comida e pelo ritmo da música. E fá-lo através de um memorial dos nossos verões enquanto jovens: os grupos de amigos, os passeios pelas praias, a noite e o embate com as escolhas do futuro. É escusado: todos estamos aqui.

Mektoub é em si mesmo uma exportação do elogio do excesso verticalizado. Sentimos os corpos, o peso do álcool e a vertigem do desejo. Mas, ao mesmo tempo, há uma orientação romântica que baralha as contas. Estamos no verão de 1994 e o local é uma cidade de praia francesa onde se encenam jogos de convivência social entre os franceses do norte de África e os louros, neste caso, as louras. Coisa de confrontos de corpos e raça através de uma história que narra o verão de Amin, que pode ser o próprio Kechiche há duas décadas atrás, um jovem argumentista que procura inspiração entre os amigos e as noitadas sem fim. Entre ele e as jovens turistas há atração mas Amin procura antes uma outra coisa: uma busca filosófica sobre o poder do romance.

Esta premissa é precisamente o cerne da investigação do cineasta, alguém que filma sexo de verão com uma carnalidade sensual, tão sensual que nos dias do politicamente correto foi acusado de visão machista. A câmara quando toca os corpos das mulheres a dançar ou a fazer amor assume um conceito sério de contacto físico, mas houve quem achasse que isso era "rebarbativo" ou "indecente". Kechiche também filma a comida da Tunisia como achado de transe, tal como acontecia já no seu O Segredo de um Cuscuz. É um cineasta livre, capaz de estar sempre em movimento perpétuo atrás de uma luz que não é de diretor de fotografia, mas sim de cineasta.

Também muito convincente é como transforma aquela energia de juventude numa corrente de ar de nostalgia. Uma nostalgia de quem observou no meio da pista de dança torrencial.

Menos conseguido é toda uma dialética para encontrarmos um ponto de suspensão na comunidade tunisina. Parece que o mecanismo é fotocopiado daquilo que era mais orgânico nos outros filmes de Kechiche. Mas nada que anule o peso de um imaginário romanesco clássico que deve ter mais desenvolvimentos muito em breve (Kechiche teve problemas com os produtores porque este canto afinal é mesmo para ter sequelas).

A dada altura, na procissão deste verão azul com grãos da areia da praia, surge uma vastidão de prazer que não se explica. Não se pode explicar, tal como o momento em que Amin fica a ver a vida a acontecer quando acompanha o nascimento de um vitelo. É a vida a acontecer e Kechiche apostou neste cinema orgânico onde o nosso olhar ganha a sensação de ser testemunha voluntária.

3 ***

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