O ex-maior país de África
O Sudão já foi o maior país de África, mas décadas de guerra civil entre os rebeldes sulistas, cristãos na sua maioria, e o governo de Cartum, controlado por muçulmanos, levou a um referendo em 2011 que fez nascer o Sudão do Sul. Foi uma divisão negociada, patrocinada pelas Nações Unidas, e em grande medida respeitada por todos os lados, mesmo pelo lado derrotado no voto, a República do Sudão, que perdeu um território maior do que a Espanha, com perto de dez milhões de habitantes.
Mais pequeno mas mais coerente, pois apesar da diversidade étnica o Sudão passou a ser povoado essencialmente por africanos arabizados e de religião islâmica, o país podia ambicionar um recomeço, cerca de meio século depois de se ter libertado do domínio colonial anglo-egípcio. Mas Omar Al-Bachir, o homem forte no poder desde 1989, não foi capaz de relançar o Sudão e certamente não ajudou à imagem internacional do país que o seu presidente fosse acusado de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade, não por causa do Sudão do Sul, mas sim pela repressão noutra região rebelde, o Darfur. Assim, o derrube de Al-Bachir em 2019 foi visto como finalmente a verdadeira oportunidade para edificar um novo Sudão e o mundo até ficou surpreendido com o entusiasmo popular pela oportunidade de construir uma democracia, com a sociedade civil deste país agora com 1,8 milhões de km2 (ainda assim o terceiro maior de África) e 50 milhões de habitantes a revelar dinamismo. Al-Bachir foi preso e acusado de corrupção, havendo mesmo na nova liderança quem defendesse a hipótese de o entregar à justiça internacional.
Quatro anos depois do derrube do presidente que se manteve no poder 30 anos, e dois depois do afastamento do primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok, todas as esperanças de ver surgir um Sudão democrático e respeitador da sua diversidade parecem agora vãs à luz dos recentes acontecimentos. Dois antigos protegidos de Al-Bachir, que repartiam o poder numa espécie de governo de transição, decidiram lançar-se um contra o outro. Como bem explicava ontem no DN o arabista Raúl Braga Pires, de um lado está o exército nacional, de Abdel Fattah al-Burhan, do outro as antigas milícias Janjawid, de Mohamed Hamdan Dagalo, essenciais na repressão da rebelião no Darfur nos anos 2000 e depois transformadas em Forças de Apoio Rápido por conveniência do regime. Mais de 200 mortos já estão contabilizados nos confrontos que decorrem em Cartum, a capital, e noutras cidades. Há funcionários da ONU mortos, ataques ao embaixador da União Europeia e disparos contra viaturas diplomáticas americanas. A comunidade internacional está a apelar a um cessar-fogo, mas há respostas contraditórias dos beligerantes a essa iniciativa para evitar mais mortes entre os civis. A esmagadora maioria da população refugiou-se em casa, longe das janelas por causa das balas perdidas, certa de que desta vez nada de bom há a esperar da agitação política.
Simples choque de egos? Disputa entre diferentes tradições militares? Luta entre um exército ligado às elites e umas milícias protetoras dos grupos marginalizados, como reclama o seu líder, apesar do historial de limpeza no Darfur? Líderes nacionais meras marionetes de potências, com interesses num Sudão frágil? Tudo pode servir como factor explicativo desta violência. Mas uma solução que evite mais mortes e um desastre humanitário - pois já falta água e comida em Cartum - não parece à vista naquele que já foi o maior país de África.