No ano passado era O Irlandês, de Martin Scorsese, que acumulava 10 nomeações para os Óscares e saiu de mãos a abanar. Agora Mank, de David Fincher, tendo alcançado exatamente a mesma proeza, arrisca-se a passar por semelhante desdita. Duas produções Netflix, dois realizadores de nome feito (enfim, Scorsese é uma instituição), dois filmes que, à sua maneira, mexem com referências do passado. O que é que está a conspirar contra Mank nesta temporada de prémios? Questões de gosto à parte, e numa análise fria, talvez a tendência para o politicamente correto: não é um filme realizado por uma mulher, como Nomadland e Uma Miúda com Potencial, não tem atores negros ou de qualquer etnia no elenco e é uma história da velha Hollywood filmada num glamoroso preto e branco (pelo menos o Óscar de melhor fotografia, para Erik Messerschmidt, não deverá escapar). No fim de contas, estar em contraciclo até é uma das notáveis características de Fincher, que já foi outras duas vezes nomeado, com O Estranho Caso de Benjamin Button (2008) e A Rede Social (2010)..Mank, que mergulha nos cenários, corredores e gabinetes da indústria americana dos anos 30 pela memória do argumentista de Citizen Kane, Herman Mankiewicz (Gary Oldman), é o mais pessoal e antigo dos projetos do realizador. O argumento, escrito pelo pai, Jack Fincher (1930-2003), ia no primeiro rascunho quando o jovem David ainda não tinha sequer assinado a sua primeira longa-metragem, Alien 3 (1992). Andou duas décadas a adiá-lo e, chegado a este ponto, eis a maior ironia: um filme cuja essência é o processo de escrita do argumento do "melhor filme de sempre" não está nomeado na categoria de... melhor argumento original! Se o pai Jack tiver o sarcasmo do protagonista Mankiewicz, há de brindar no Paraíso à anedota terrena. Já David, quando abordado sobre isso pelo The Guardian, valorizou antes a façanha numérica: "Dez é bom. Não tenho queixas sobre 10 [nomeações]. Ele não vai ficar chateado.".Não obstante o significado íntimo de Mank e o facto de ser uma produção de época, nele encontramos um efeito de discurso corrosivo que faz parte do ADN fincheriano. Um mal-estar que já vinha alojado no filme que o lançou depois de Alien 3, este um falso sinal de partida. Falamos de Seven - 7 Pecados Mortais (1995), claro, com um dos finais mais célebres e mentalmente violentos de Hollywood, que inscreveu a forma de estar de um jovem cineasta perante os estúdios: para desagrado da New Line Cinema, Fincher não suavizou a mítica cena "what"s in the box" (se não viu ou não se recorda, não vamos contar...). E foi o melhor que fez..Esta obra-prima do noir moderno, com Brad Pitt e Morgan Freeman na pele da dupla de detetives atrás de um serial killer que mata em função dos pecados mortais, estabeleceu um estilo sombrio e sofisticado, que misturava as habilidades do realizador de videoclipes - que Fincher nunca deixou de ser - e uma inteligente visão cinematográfica, sem concessões..Tanto assim foi que com Clube de Combate (1999) levou o espírito de rebeldia ao extremo. Este conto sobre a emancipação, que é também uma sátira da masculinidade, em que um funcionário de escritório (Edward Norton), através de outra versão de si mesmo (Brad Pitt), cria um clube de luta como forma de vingança contra o sistema, contribuiu para a reputação de Fincher como alguém estranho aos valores que consagram a indústria do cinema americano. Nada que lhe tenha dado insónias como as da personagem de Norton....Estes são dois dos "clássicos" do realizador de Mank disponíveis nas plataformas de streaming que merecem ser (re)descobertos. Caso também de Sala de Pânico (2002), exercício formal de jogo de sobrevivência dentro de uma casa em processo de assalto, e Zodiac (2007), um excecional e viciante thriller, tal como Seven, que alargou a quatro personagens o retrato da investigação à volta de um assassino em série: um cartoonista (Jake Gyllenhaal), um repórter (Robert Downey Jr.) e dois detetives (Mark Ruffalo e Anthony Edwards); sendo o primeiro, e mais improvável, que leva até ao limite a busca pela identidade do assassino. A história é baseada num serial killer autodenominado Zodiac, cuja ameaça real foi sentida pelo próprio Fincher enquanto criança. Nesses anos 60, ele sabia muito bem o significado de bicho-papão: "Literalmente, dos 5 aos 10 anos não conseguia dormir, tinha pesadelos", disse ao The New York Times. Eis então o que lhe tirava o sono..Os mais recentes, A Rede Social (2010), que valeu a Aaron Sorkin o Óscar de melhor argumento adaptado por esta enérgica narrativa da origem do Facebook, e Em Parte Incerta (2014), que adapta um best-seller de Gillian Flynn sobre uma mulher desaparecida, confirmam a máquina bem oleada do perfeccionismo do realizador, que sempre se regozijou por não dar finais felizes, defendendo que se deve deixar cicatrizes no espectador. E porque não uma perna engessada, como a de Mankiewicz/Gary Oldman?.Imediatamente antes de Mank, David Fincher realizou para a Netflix a série policial Mindhunter, que vai aos anos 70 sondar a psicologia dos assassinos. E é, no fundo, este sentido de busca epistemológica que está em quase todas as personagens do seu universo. Quer dizer, uns ficam obcecados com serial killers, outros são consumidos pela febre do argumento perfeito para o melhor filme do mundo..Seven - 7 Pecados Mortais: Netflix.Clube de Combate: Prime Video.Sala de Pânico: Netflix.Zodiac: HBO.A Rede Social: Netflix.Em Parte Incerta: Prime Video.Mindhunter: Netflix.dnot@dn.pt