O espírito do amor num assombro de Casey Affleck
As casas antigas têm uma respiração própria. Fazem pequenos ruídos, como se sussurrassem o passado numa estranha comunicação com os seus habitantes. Em A História de um Fantasma (A Ghost Story, 2017), o americano David Lowery eleva-nos a imaginação e conduz-nos na crença de que esses barulhos são produzidos pelos fantasmas dos seres que viveram na casa, e que tentam entrar em contacto com quem nela vive, manifestando o seu estado de espírito através dos objetos.
Pode ser um livro que cai da estante, ficando aberto na página que contém uma mensagem íntima e secreta, ou as teclas do piano que tocam porque "algo" tombou sobre elas... Não há nada de propriamente original nesta teoria, estará o leitor a pensar. É um clássico, sem dúvida. Mas a abordagem que o realizador de A Lenda do Dragão nos apresenta não é, nem de perto nem de longe, qualquer coisa que estejamos habituados a ver. Além disso, foi o resultado artístico de uma crise existencial (depois de o realizador ler um artigo sobre terramotos e se convencer de que o fim do mundo estava próximo).
Tendo contornado o circuito das salas de cinema portuguesas, por ser um verdadeiro produto de nicho, A História de um Fantasma acaba de nos chegar editado em DVD. E o aviso à navegação deve ser claro: este é um trabalho bem mais autoral (argumento e realização) do que a referida anterior produção Disney assinada por Lowery.
Não se trata de um filme de terror ou de um exercício de sustos. Nada disso. Aqui temos o oscarizado Casey Affleck e Rooney Mara no centro de uma reflexão, em forma de conto, sobre o amor e o imaginário da perda - são o jovem casal que está de saída de uma dessas casas saudavelmente "assombradas". Todavia, antes de fazerem as mudanças, ele sofre um acidente mortal e ela terá de lidar com a sua ausência súbita naquele espaço da intimidade dos dois. Nesse momento, Lowery põe o seu plano lírico em ação, convertendo Affleck num fantasma que volta para casa, na esperança de restabelecer a ligação com a mulher.
Mas há um dado fulcral e muito interessante nessa metamorfose: não estamos a falar de uma qualquer fisionomia criada com meios digitais (o apanágio dos nossos dias)... Simplesmente, puseram um lençol branco sobre o corpo do ator, que, com pouquíssimos movimentos, garante uma complexa narração psicológico, enquanto presença "invisível". Uma escolha cinematográfica que tem toda a razão de ser, porque, além de conferir a cada imagem do filme uma dimensão plástica superior, torna a experiência física e conceptual, imbuída de um realismo poético que cede ao fantástico.
O desejo do realizador de nos aproximar deste universo curiosamente abstrato está também no modo como o tempo - ornamentado com a subtil banda sonora de Daniel Hart - é laborado enquanto substância dramática.
Atente-se na majestosa cena, longa e não editada, em que vemos Rooney Mara a devorar uma tarte quase inteira, num choro silencioso, enquanto o homem do lençol a observa no canto da cozinha, ou no extenso sermão de Will Oldham (o cantor Bonnie "Prince" Billy) - na sua única e brilhante aparição no filme - a dissertar sobre o legado da arte, a partir do exemplo da nona sinfonia de Beethoven. São passagens como estas, entre um conjunto de planos impactantes e sem diálogos, que fazem de A História de um Fantasma uma refinada partitura visual, que nos puxa para dentro de um feitiço melancólico.