O encontro de Amália com Lisboa 40 anos depois do sucesso lá fora

Em abril de 1987 o Coliseu aplaudiu longamente a fadista. Aos 67 anos, Amália cantou para o seu público num espetáculo de emoção
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(Re)viver o grande encontro de Amália com o público português, com todo o ambiente e todos os aplausos. Mesmo os quase três minutos de aplausos que coroam Povo que Lavas no Rio. Frederico Santiago não cortou "nem um segundo" de aplausos neste registo posto, integral, pela primeira vez à disposição do público. É o concerto de 3 de abril de 1987, no Coliseu dos Recreios em Lisboa.

Este não foi o primeiro concerto de Amália em Portugal a solo, reconhece o investigador e coordenador desta edição. Dois anos antes, a fadista dera um concerto em Lisboa. Mas este recital de abril de 1987 "foi uma consagração enorme", perfeitamente audível no registo sonoro deste Coliseu. Um registo intencional: "O Povo que Lavas no Rio, para além de ter no final quase três minutos de aplausos gigantescos, é interrompido com aplausos... todo o concerto é muito especial", diz Frederico Santiago. Posto o disco a tocar, ouve-se o Coliseu a aplaudir logo que a fadista canta a primeira palavra do poema, povo, escuta-se a longa ovação no fim, com a sala em uníssono a gritar "Amália, Amália, Amália". A diva ouviu o público e respondeu, com algo que "vinha a dizer há 47 anos: Graças a Deus gostam de mim e eu gosto de vocês".

Este Coliseu é isto: uma história de amor entre Amália e o seu público. "A Amália tinha quase 67 anos, é no fim da sua carreira, mas tem uma particularidade muito grande: a Amália só deu concertos em Lisboa, sozinha, no fim da carreira, o que é quase impensável. O primeiro concerto que deu em Portugal, sozinha, foi em Lisboa em 1985, coisa que ela tinha feito no mundo inteiro desde finais dos anos 1940", precisa Frederico Santiago. O reconhecimento internacional chegou muito antes do reconhecimento no seu país, frisa o investigador que perdeu a conta aos concertos de Amália que ouviu - nunca assistiu a nenhum "por idade" - nessa sua paixão pela fadista, que o tem trazido nos últimos anos dedicado à sua arqueologia sonora.

E nem esta Amália mais velha, já distante do timbre dos anos 1960 e 70 vivido nos palcos internacionais, a faz perder o encanto: "A Amália era inteligentíssima e, portanto, sempre adaptou a sua maneira de cantar à voz que tinha. Um cantor tem o azar de a voz envelhecer, um pianista, por exemplo, tem sempre o piano em forma. Mas apesar de a voz da Amália estar muito envelhecida, ela está no auge das suas capacidades, ela está no zénite de toda a maneira de frasear, da emoção, da noção que tinha de fazer um alinhamento durante um concerto e, portanto... ela não foi bem perder a voz, ela está com um timbre envelhecido, mas não falha notas, continua a ser a enorme música que sempre foi. Agora, claro, não tem aquele timbre espantoso de milagre que tinha quando era mais nova, mas compensa isso com tudo o resto porque está no auge de tudo o resto. A Amália era muitas coisas além da voz", sustenta.

As gravações originais desta edição - tal como a do CD triplo Amália em Itália - A Una Terra Che Amo, editado em abril - foram encontradas nos estúdios Valentim de Carvalho. Estavam em bom estado, o que permitiu dar agora a escutar o concerto de uma forma inédita. Frederico Santiago precisa que este espetáculo fora editado em vinil numa caixa com três LP em 1987, "mas era uma mistura dos dois dias [3 e 4 de abril]. Nunca tinha sido reeditado em CD". Esta edição em vinil tinha "uma mistura em que foi acrescentado muito eco, portanto o som não era nada bom". Neste Coliseu que agora chega às lojas, "o som é puro". Isto graças às "bobinas multipista que se conservaram e permitiu fazer uma nova mistura", conta.

Novidade permanente

Em permanente demanda na obra da fadista, Frederico Santiago diz que uma das coisas fascinantes desta descoberta é que Amália foi apresentando sempre coisas novas. "Até ao fim da carreira, mesmo no último recital que fez na vida, que foi em 1994, estreou coisas novas." Neste concerto não foi exceção. Estreia um fado de Alain Oulman, Soledad, com poemas de Cecília Meireles, poetisa brasileira. Coliseu apresenta-se num CD duplo, com o registo integral do recital de 3 de abril e parte do de dia 4 e inclui um texto do historiador Jorge Muchagato, que tem investigado a carreira da fadista.

Frederico Santiago, coordenador deste duplo CD, está, curiosamente, mais ligado à música clássica. Conta que um dia se apaixonou por Amália porque "essa mulher cantava como só os maiores cantores de música erudita cantam". E até no timbre envelhecido da fadista consegue encontrar virtudes: "Ela não está com o esplendor vocal que tinha em mais nova, mas por outro lado grande parte dos poemas que ela canta fazem mais sentido numa mulher com esta idade, ainda aumenta a carga trágica que o fado tem, e isso é muito sentido pelo público", descreve.

"Ouvi centenas de concertos dela, mas não conheço um concerto que não seja um triunfo e este é mais uma vez um desses triunfos e o encontro com a terra dela, porque ela é de Lisboa, e no género que ela mais se notabilizou, que foi no fado, acrescenta essa força maior. Apesar de ter sido a estrela que foi no estrangeiro, nenhum público a consegue perceber com a mesma força que o português, quanto mais não seja porque canta na nossa língua."

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