O elixir da eterna juventude é um livro de fotografia e poemas
Quando chegar novembro, Sérgio Godinho terá mais do que é costume para contar a quem se chegar a ele, mais perto da lareira. A história (verdadeira) inclui um livro de fotografias que andou a fazer durante a pandemia, acompanhadas de uma série de poemas. Faltava-lhe por cá fora essa arte.
É um projeto que anda adiado desde o ano passado. E o que esperar então dessa obra que chegará no outono, em que imagem e texto têm "uma relação às vezes mais outras menos óbvia?" Sérgio Godinho não desvenda o que aí vem, apenas que reflete muito do que gosta: a imagem. É por isso que o livro se vai chamar "palavras são imagens, são palavras". E as palavras o público sabe que lhe estão coladas à pele, seja na música ou na literatura, onde já deixou marca. Como n" O Pequeno livro dos medos, dedicado ao público infantojuvenil (em que também fez as ilustrações), que se seguiu aos romances O Coração mais que perfeito e Estocolmo. Não admira que lhe chamem, por isso, o homem dos sete instrumentos - como na canção que escreveu nos anos da clandestinidade, em Paris, em 1972, para o álbum Pré-Histórias. Já nessa altura, rapaz novo, a canção traduzia "essa minha polivalência", admite. Na verdade, ele acha mesmo que "as artes estão associadas", por isso gosta de "mudar de género, e de arriscar".
O tempo de confinamento foi para ele uma travessia plena de criação. De tal modo que, depois do livro de fotografia e poemas, tem já um novo romance pronto a sair. Como se tomasse o elixir da eterna juventude, mas nunca marado, falsificado, ou desleal.
A conversa com o DN acontece em Coimbra, no final de um colóquio sobre o centenário de Georges Brassens, um dia antes de abrirem sem restrições os bares, discotecas e outras salas de espetáculos. Finalmente, mais do que as janelas que foram abrindo, é a porta que se escancara. Para ele, "o espetáculo ao vivo é a maior finalidade da canção". Não nega que tem "uma relação ambígua com o estúdio. Afinal, ele é preciso. Mas o que eu gosto mesmo é das canções ao vivo, desse risco, desse confronto com o público, dessa energia que damos e recebemos. E por isso isto foi um deserto, nos últimos dois anos".
No meio da aridez, Sérgio Godinho foi-se agarrando a pequenos oásis, sempre com a ajuda do público, nos espetáculos com lotação a 50%. "As pessoas são muito entusiastas e compensam. Mas como é evidente, é muito diferente. E até em termos monetários, na possibilidade de uma Câmara que nos contrata", conclui. O ano passado custou-lhe particularmente. Fez 75 anos a 31 de agosto. Contava fazer uma grande festa, mas a covid furou-lhe os planos. A contingência foi simples: um concerto (desdobrado em dois) "que se esgotou num fósforo, e por isso acabaram por ser seis concertos no Teatro Maria Matos". É um dos espaços que muito preza em Lisboa - tanto que um dos seus discos se chama Nove e Meia no Matos. O cantor elenca esses seis, sabe que não fazia concertos há muito tempo, e que além desses poucos mais fez. Nem os quis contabilizar. "Vários tinham sido ou adiados ou cancelados". De permeio, gravou uma canção, "o novo normal". Este ano já não tem grande coisa em agenda, mas para o ano vem-lhe à memória uma frase batida: "tenho sempre um concerto ali próximo do 25 de Abril. E para o ano tenho um a 24, que estava para acontecer em 2020, na avenida dos Aliados, no Porto (que é a minha terra), e que este ano voltou a ser adiado. Na semana passada já me confirmaram que vai acontecer em 2022. Vamos ver se desta vez dá certo".
Sérgio Godinho já lá cantou muitas vezes. Tem ali cravada a infância, como tem memórias espalhadas pelo Rivoli, pelo Coliseu. De resto, gosta de Coliseus. Não consegue de todo identificar um palco preferido, mas "as salas circulares têm uma envolvência. Mas de todas essas, talvez a que goste mais seja o Teatro Circo de Braga. É lindíssimo. E foi muito bem recuperado, é uma sala preciosa. Embora o Teatro onde eu atuei mais penso que tenha sido o São Luiz. Tem aquele jardim de inverno belíssimo. Além disso, foi o primeiro teatro onde atuei, quando voltei para Portugal, logo a seguir ao 25 de Abril, na altura que se começaram logo a improvisar os cantos livres". Não bastara toda essa maioria de razões, o último disco também foi gravado no São Luiz.
É em Lisboa que mora, e por isso é (n)ela que amanhece desde domingo de forma "surpreendente". É assim que classifica a resenha das eleições autárquicas na capital, quando instado a comentar o resultado. "Não estava à espera que acontecesse, parece que foi por uma margem mínima. A minha expectativa é que as boas coisas que a anterior autarquia fez não sejam perdidas. Não posso detalhar muito. O Moedas é uma incógnita...mas espero que as coisas a nível cultural não sejam desvirtuadas, mas sobretudo a nível social, porque Lisboa - apesar de ser uma cidade que andou muito para a frente - tem ainda muitas carências e desigualdades. Os preços exorbitantes da cidade fazem com que muita gente vá viver para as periferias. Isso não é um mal, em si. Mas quando é forçado, é um mal, em si."
Em Lisboa, Sérgio Godinho gosta sobretudo da luz. Da abertura para o rio, da companhia dos filhos e dos netos. E da rua, das esplanadas, de ver as pessoas passar. Como fazia George Brassens à varanda, na rua onde morava, em Paris.
Sérgio Godinho foi à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) participar num colóquio a propósito dos 100 anos do nascimento do cantor francês, nascido a 22 de outubro de 1921. No velho anfiteatro esperavam-no alunos, professores, entusiastas da canção francesa. A professora catedrática Cristina Robalo Cordeiro conseguiu o feito inédito de começar um ciclo de debates com Jacques Brell e terminar com Brassens. "Vivemos um tempo em que o francês parece uma língua exótica", disse, ainda antes de Sérgio Godinho entrar na sala e desfiar um conjunto de memórias que guarda dos tempos em que, no exílio, dividiu Paris com Georges Brassens. E fê-lo ao som d"A Barca dos Amantes, uma canção de 1983, escrita por ele, com música de Milton Nascimento. Passaram quase 40 anos. Sérgio trauteia baixinho, depois sobe o tom. Cristina Robalo Cordeiro tinha preparado umas notas sobre ele, que acaba por não usar. "Isso não é preciso...as pessoas já sabem disso", diz ele", e passa a Brassens, o cantautor de intervenção que morreu novo (aos 60 anos), deixando centenas de canções à humanidade.
Em comum, um e outro tinham aquela particularidade de começar uma canção pela música, pela base musical. "Porque é na música que depois se podem grafar as frases. Há muito tempo, numa conversa com o Chico
Buarque, ele disse-me o mesmo. Não posso universalizar o método, mas acho que assim resulta melhor", enfatiza Sérgio Godinho, que na tarde de quinta-feira, último dia de setembro, escolhei meia dúzia de canções de Brassens para lhe ilustrar a obra.
"O Brassens é um grande músico. É extremamente musical. O mundo dele existe com as situações que congemina, as personagens, muitas vezes baseada em canções populares. A maneira como cantava era particular, não era exuberante: viola na mão, pé em cima da cadeira. Era uma maneira tão própria que fazia dele alguma coisa de especial", contou Sérgio Godinho, lembrando que "a hipocrisia e a sociedade eram os seus temas favoritos". Crítico social, nunca deixou de ser "um grande humanista, alguém que amava as pessoas".
Cristina Robalo Cordeiro conduz a conversa para Brassens através da música do amigo Sérgio, pois que encontra aqui e ali alguma semelhança. Por exemplo, a propósito de Etelvina, em que "Sérgio Godinho, tal como Brassens, tem a capacidade de criar uma personagem com meia dúzia de palavras e uma história. Pergunta-lhe então: Como é que em meia dúzia de palavras se consegue dizer tanto? "As canções são um exercício de síntese", responde Sérgio.
Viveu quase seis anos em Paris, dois em Genéve. "Quando comecei a ouvir e depois a tentar compor, o Brassens foi uma das influências, porque ele é um carpinteiro de canções extraordinário. Ele estudou a mitologia, conhecia os poetas. Mas mais do que uma Influência, ele sempre foi um estímulo enorme.
Veja-se a Chanson por l'auvergnat - há sempre aquele sentimento de injustiça. Ele fala dos que são, mais do que a sentem. Porque muitas vezes nem o sabem".
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