O discurso do rei e Portugal
Portugal tem todo o interesse em acompanhar de perto a evolução das relações entre os seus dois vizinhos. Sim, dois vizinhos: o óbvio, que é a Espanha, e aquele que por vezes esquecemos dada a ausência de fronteira terrestre, e que é Marrocos. Ora, as relações entre Madrid e Rabat têm registado importantes mudanças nos recentes meses, com o reconhecimento por parte do governo de Madrid da chamada Iniciativa de Autonomia marroquina para a antiga colónia espanhola do Sara Ocidental como a solução mais realista para o território, dado o impasse no recenseamento eleitoral que permitiria o referendo de autodeterminação que ainda é oficialmente o objetivo da ONU.
Por ocasião do 69.º aniversário do levantamento nacional que se seguiu ao exílio em 1953 de Mohammed V, e que três anos depois culminou no fim do protetorado franco-espanhol e na reconquista da independência marroquina, Mohammed VI fez um discurso onde, aludindo à luta do avô no passado, pôs, porém, a tónica no presente, sublinhando a soberania sobre as províncias do sul. E deixou claro que as relações de qualquer país com o reino dependerão da aceitação da marroquinidade do território que a Espanha abandonou em 1975 e que os independentistas da Frente Polisario continuam a reivindicar a partir da sua base em Tinduf, na Argélia. Assim, o rei fez questão de salientar o grande número de consulados abertos em Layounne e Dakhla, em regra por países africanos e árabes, mas sobretudo destacando o reconhecimento pelos Estados Unidos, em 2020, da soberania marroquina sobre o Sara (decisão de Donald Trump no final do mandato, mantida por Joe Biden) e o apoio espanhol a uma solução autonómica, feito já este ano.
Valorizando a posição agora de Espanha sobre um território do qual foi a potência administrante, o monarca anunciou uma nova fase das relações hispano-marroquinas, que se percebe terá impacto no controlo da pressão migratória sobre os enclaves de Ceuta e de Melilla e também na cooperação económica entre os dois lados do Estreito de Gibraltar. A edição em castelhano da revista Forbes salientava, há tempos, serem mais de 350 as empresas espanholas com negócios com Marrocos e que as trocas comerciais anuais valiam 14 mil milhões de euros.
Portugal também tem relações económicas importantes com Marrocos, uma das economias mais diversificadas de África. E o clima de cooperação entre os dois países é muito bom, basta pensar no acordo de migração assinado no início do ano pelo então ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e pelo homólogo marroquino, Nasser Bourita, num encontro por videoconferência com agenda vasta.
Ora, Portugal teve direito a referência valorativa no discurso real, surgindo no grupo de países que o monarca considera terem em conta os interesses de Marrocos: "A posição construtiva em relação à Iniciativa de Autonomia mostrada por uma série de países europeus como Alemanha, Holanda, Portugal, Sérvia, Hungria, Chipre e Roménia, contribuirá para abrir uma nova página nas relações de confiança com essas nações amigas, para fortalecer a parceria de qualidade que as une ao nosso país".
Caberá agora à diplomacia portuguesa esclarecer o alcance desta referência, decisiva para a relação com Marrocos, mas que certamente não agradará à Polisario, nem à Argélia, país com o qual Lisboa mantém boas relações e, até há pouco tempo, era vital por causa do gás. Ainda na sexta-feira, numa análise no DN, o arabista Raúl Braga Pires falava do apoio alemão ao plano marroquino para o Sara e de como era importante Lisboa antecipar-se a novos passos de Berlim (até porque Paris, sempre próximo de Rabat, pode também entrar em jogo, acrescento eu): "A acontecer desta forma, que parece simples e simplista, o jogo mudará em definitivo. Ter um país da União Europeia sozinho com uma posição diplomática e política isolada relativamente a um terceiro e ter esse mesmo país acompanhado da Alemanha "é outra loiça"! Por isso tenho defendido que Portugal deveria ter seguido o exemplo de Madrid, logo no dia seguinte ao discurso de Pedro Sánchez. Porquê? Porque Portugal replicar posições espanholas é normal e, neste caso específico, ganharia pontos que nos destacariam dos demais aos "olhos do palácio". Ser incluído numa decisão em bloco da UE é ficar diluído entre os demais e perder margem de negociação favorável pela Península Ibérica ter atuado em bloco, pela proximidade, laços históricos, pela rivalidade ibérica ser bem compreendida e usada por marroquinos neste "entre nós a três"".
No ano passado, um manifesto subscrito por várias figuras portuguesas, com destaque para o antigo vice-primeiro-ministro Paulo Portas, defendia o reconhecimento da soberania marroquina sobre o Sara, que Portugal deveria promover durante a presidência da UE. Nesse caso, teria sido uma clara antecipação de Lisboa à decisão de Madrid.
Diretor-adjunto do Diário de Notícias