Não havia memória de uma coisa assim: no escondido da noite, um homem matou sete pessoas, uma delas a sua filha mais velha de 16 anos, a outra a sua mulher de 36 anos. O crime da praia do Osso da Baleia (Pombal) deixou o país em estado de choque, agarrado a uma história insana que o seu autor decidiu escrever num diário, como se a antecipação da sua loucura fosse um romance policial. A última entrada nesse diário resume as muitas dezenas de páginas que escreveu entre agosto de 1986, sete meses antes do massacre, e 2 de março de 1987: "Lamentavelmente consumado e engrossado o início da minha loucura. Médicos, agora acreditam? Osso da Baleia.".Foi com paixão que a opinião pública seguiu o diário que o próprio Vítor Jorge enviou ao Correio da Manhã, que o publicaria aos poucos. No envelope em que o remeteu, com a mesma data de 2 de março de 1987, escreveu em letras maiúsculas: "Há sempre um pouco de razão na loucura.".Essa era uma ideia que constantemente referia no diário. Sempre a falar na "chacina". Chegou até a antever os títulos que os jornais iriam escrever perante o seu grande feito: "Homem enlouquecido derrama sangue de inocentes", "Mensagens desconexas e loucura provoca grande tragédia", "Homem desesperado depois de assassinar várias pessoas põe termo à vida", "Insanidade mental provoca crimes horríveis.".Trabalhava num banco e tirava fotografias em casamentos e batizados. Mas passava parte do seu tempo a planear homicídios. Foi fazendo listas de pessoas que queria matar. A 17 de novembro de 1986 eram 12: "Antes de pôr termo à vida pensei em liquidar pela seguinte ordem as seguintes pessoas - LASJ, SMSJ, RMM, RL, MDG, AMMR, EC, MLCM, VAMO, AMPAR, EVMJ, e ainda JMFSM. Claramente premeditada esta chacina, a sua execução deverá levar no máximo 14 horas para que o objetivo seja parcialmente conseguido, caso contrário ficará frustrada esta minha ação." Seguiam-se as horas a que mataria a primeira para depois assassinar a segunda e assim sucessivamente, até chegar à sua própria morte..E depois surgiam entradas sobre a incapacidade para levar a cabo o plano, "a luta violenta" e o "inferno" em que vivia. E mais à frente: "De uma coisa tenho certeza. Assim que conseguir fazer a primeira vítima, as restantes são mais fáceis. Só os psicólogos ou neurologistas podem compreender o meu constante apelo a Deus para que me leve antes de poder ter a coragem de cometer esta chacina pois para mim seria muito menos angustiante do que ver a imagem de sangue e dor que sempre detestei.".No envelope que enviou ao CM constavam também relatórios médicos, recibos do ordenado e uma mensagem ao Presidente da República que era então Mário Soares: "V. Exª deverá promulgar a pena de morte para os seguintes crimes: assassínio, incendiários, violadores de menores, traficantes de droga..O Papa João Paulo II também tinha direito a uma missiva: "Não permita V. Exª que grande parte dos seus padres se aproveite da inocência e da confissão das raparigas para de uma forma chantagista as levar a ter relações com eles." Depois de ser condenado a 20 anos - só cumpriu 14 anos e seis meses de pena - viria a ser um dos auxiliares do capelão da prisão e a dirigir o coro. Foi um preso exemplar, bem comportado, cooperante e por isso teve direito a 12 saídas precárias..A "culpa" das mulheres.O diário de Vítor Jorge começa pelo seu nascimento precoce, aos sete meses. "Sem pai nem mãe fui criado pelos meus avós até à idade de oito anos. Mimado mas enclausurado, passava dias inteiros enclausurado em casa. E foi aos cinco anos, conta, que presenciou a primeira grande tragédia: o tio afogou duas filhas gémeas. Estas crianças eram irmãs da prima, Isabel Jorge, que chegou a ser estilista da Cacharel e o acolheu em França depois de sair em liberdade com 52 anos, a 5 de outubro de 2001..Rapidamente resvala para a mãe, a quem culpa de ter um amante mesmo quando vivia com o pai do seu irmão mais novo - aliás as mulheres da sua vida surgem muitas vezes como responsáveis pelos seus tormentos. A mulher porque não casou virgem e afinal não teve relações sexuais apenas com o anterior namorado - teria sido violada por um patrão e os primos usavam isso para a submeter. Casaram quando ela estava grávida de Anabela, a filha que matou à facada no pinhal da Amieira; A mãe porque recebia homens num quarto em Lisboa onde viviam e não o poupava de a ver ter relações sexuais; a filha Anabela porque namorava com um homem mais velho, já com um filho, e que, daria trela a todos..No carro, uma Renault 4 L branca, em que levou os cinco jovens até à praia do Osso da Baleia, deixou um papel que dizia: "Mato a minha mulher porque não era virgem quando casou, mato as minhas filhas para não serem pasto para os prazeres do mundo, poupo o meu filho para perpetuar a semente do mal.".Não matou a filha mais nova, Sandra. Também a levou ao pinhal, como tinha feito, uma a uma, com a mulher e a filha mais velha com a desculpa de ter atropelado uma pessoa e precisar de ajuda. Mas acabou por poupá-la perante as suas súplicas. Ainda lutaram no pinhal e ela, mesmo ferida, conseguiu tirar-lhe a faca partir a lâmina. Enquanto todo este terror decorria, o filho Vítor, de 10 anos, dormia tranquilo..Leonor dos Santos Tomás tinha festejado os seus 24 anos nessa noite. Teria uma relação com Vítor Jorge, sendo a "única mulher que verdadeiramente amou." Empregada de limpeza no hospital de Coimbra, tinha convidado os amigos para festejar na casa da mãe. Saíram de lá já de noite, para apanhar o comboio na Guia à boleia de Vítor Jorge. Em tribunal, este disse que lhe apontou a pistola ao coração, quando ela estava sentada, e lhe disse: "Ajudaste a destruir a minha vida eu destruo também a tua.".Vítor Jorge fazia questão de escrever, de justificar os seus atos. Na praia do Osso da Baleia, a Polícia Judiciária encontrou ao lado do corpo de Leonor uma mensagem: "Isto foi porque tu quiseste. Os outros foram por arrastamento." Supostamente, não conhecia os outros quatro jovens - Luís Teixeira, de 17 anos, Maria do Céu Araújo (20), Isabel Moreia (21) e José Pacheco (22). Ele tinha 38..Os jurados analfabetos e as donas de casa.O processo judicial foi rápido: o crime aconteceu na noite de 1 para 2 de março, vésperas de Carnaval. Vítor Jorge andou fugido, deixando toda a região em polvorosa, e foi encontrado no dia 5 na aldeia de Casais d'Além. Uma vizinha, que o conhecia bem até porque tinha ali vivido, deu com ele deitado no chão de um casebre em ruínas..Foi detido e levado para o hospital porque estava febril e ferido numa perna. Logo a 13, o juiz de instrução criminal de Leiria, Eduardo Correia Lobo, levou-a à praia e ao pinhal para a reconstituição do crime. Vítor Jorge surge nas fotos desse dia com um ar tranquilo, a explicar às autoridades como matou sete pessoas a tiro, à paulada e à facada..O julgamento não demorou. Primeiro foi agendado para 23 de novembro, mas viria a ser adiado para 15 de dezembro. Quando chegou ao tribunal nessa manhã, sem algemas, o assassino de Osso da Baleia tinha à sua espera um batalhão de fotógrafos. Era defendido por um advogado oficioso, Mário Ferreira..O sorteio dos jurados começou por não correr bem. Só saiam analfabetos. Mas lá se conseguiram os oito jurados efetivos e os dois suplentes - seis dos efetivos eram mulheres, três donas de casa, uma mulher a dias, uma empregada de supermercado e uma comerciante. Dos dois homens, um era agricultor e outro industrial.."Não me fale de amor que isso arrepia-me".No início da sessão, o advogado leu a contestação do réu. Que pedia, por exemplo, que os jurados fossem constituídos por familiares das vítimas. E frisava que a sua defesa devia assentar na busca da verdade e da justiça. Mesmo que isso significasse que deveria "ser morto por crucificação ou apedrejamento popular.".Numa pequena entrevista que nesse dia deu ao Jornal de Notícias enquanto não se iniciava o julgamento disse que "o Vítor Jorge é um monstro e praticou monstruosidades que não merecem piedade nem perdão." Falava de si na terceira pessoa..O jornalista Artur Queirós perguntou-lhe se sempre viveu sem amor. A resposta: "O Vítor Jorge antes da noite de 1 de março tinha os horizontes fechados e hoje continuam fechados e amanhã serão muito negros. Não me fale de amor que isso arrepia-me." Amor, disse, só sentiu por Leonor. "Talvez por isso a única imagem que tenho daquela noite bem nítida a tirar-me o sono, é o momento em que lhe dei o tiro no coração.".O julgamento foi marcado com a polémica sobre a inimputabilidade do homicida, com vários especialistas a defenderem que tinha graves problemas mentais. O catedrático e psiquiatra Eduardo Cortesão foi um dos que defendeu essa tese com mais fervor. Tal como o advogado Mário Ferreira..Do outro lado da barricada estavam os os médicos do Centro de Saúde Mental de Leiria, que examinaram Vítor Jorge após a sua detenção, a garantirem que nada foi detetado que apontasse para que fosse inimputável. Foi considerado imputável e condenado em cúmulo jurídico a 20 anos. Para a história ficam as suas próprias palavras no primeiro dia do julgamento: "Não há pena suficientemente severa para castigar um monstro que ceifou sete vidas.".Morreu a 29 de dezembro, soube-se este sábado, na Córsega, onde vivia há alguns anos.