O dia em que o Tribunal Constitucional perdeu a independência

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Passado um mês sobre a agitada cooptação de um juiz do Tribunal Constitucional pelos seus pares, já há distância para compreender o que se passou e seus efeitos. Colocado sob a pressão, muito violenta, de actores políticos pela comunicação social, o Tribunal Constitucional vergou-se; e não efectuou a cooptação. Daí, houve dois danos: um, na composição do Tribunal, que continuou incompleta; outro, na sua independência, que, naquele dia, finou-se. A composição não é grande problema: mais tarde ou mais cedo, a escolha em falta será feita. Mas 31 de Maio de 2022 foi a data em que o Tribunal Constitucional perdeu a independência, ao mostrar que campanhas políticas são capazes de o vergar nas suas decisões. Não é segredo. Todos assistimos.

O Tribunal, se quiser e puder, pode recuperar a independência perdida - assim como essa imagem. É desejável que o consiga. Deverá fazê-lo em modo que a opinião pública o verifique tão bem como viu que a perdeu. E é evidente que a quebra de independência fere todo o tribunal, mas não todos os seus juízes. É apenas dos juízes que inauguraram esta era, cedendo às pressões públicas (em privado, também certamente).

"O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes" - fixa a Constituição. Enquanto dez estão sujeitos à decisão dos deputados, os últimos três não: são escolha exclusiva interna. Aliás, mesmo o processo de escolha dos dez da Assembleia deve a honrar a dignidade do Tribunal e respeitar a independência dos juízes, não os comprometendo em batalhas políticas. Poluir a escolha dos juízes será matar o Tribunal e o seu crédito: independentemente da honorabilidade de cada um, passariam a ser vistos como agentes partidários e o Tribunal como ficção.

O que seguimos pela comunicação social foi isto: uma "fuga" de dentro do Tribunal terá passado a políticos e à imprensa que o candidato a cooptar seria o Prof. António Almeida Costa; nunca teria havido "fuga" similar; a esquerda organizou-se para, por um lado, enormizar os ataques contra o candidato e, por outro, etiquetar publicamente os juízes decisores entre os "de esquerda" e os "de direita"; disseram-nos que, segundo as praxes em uso, a cooptação seria para substituir um juiz "de direita" por outro; a campanha foi promovida por deputados (violando a separação de poderes) e outros políticos de esquerda, engrossando a pressão; a vozearia anunciou querer que, estando os cinco "de direita" alinhados para aquela escolha, e, sendo necessário mais dois "de esquerda" para a cooptação, ao menos um destes furasse a praxe; foram usados retalhos avulsos de posições do candidato nos debates jurídico-constitucionais sobre o aborto há 38 e há 27 anos, acrescentando, à última hora, outra sobre defesa do segredo de justiça, fora de contexto e de propósito.

A morte da independência do Tribunal resultou de a campanha ter atingido o que publicamente pretendia: que, ao menos, um juiz decisor furasse as praxes, impedindo a maioria de sete. A cooptação podia não acontecer, sem isso ser mal: se dentro do sigilo do tribunal e da exclusividade interna da decisão. O acontecido é tão mau quanto se fosse sobre um projecto de Acórdão. Ficámos mais perto disso. O cerco movido pela maioria de esquerda tem subido vários degraus e mostra não querer a independência do Tribunal, mas a sua dependência.

A campanha também exibiu extrema intolerância. Nos ataques a Almeida Costa, a propósito do aborto, ignorou que o direito à vida é o problema jurídico-constitucional que se coloca, havendo posições num e noutro sentido. A gritaria visou proibir um só juiz favorável ao cabimento do direito à vida. Nem um! Por aí se vê que o que esteve realmente em causa, por baixo do ruído, foi o debate da eutanásia, em curso: não pode entrar nem um juiz a favor do direito à vida.

O caso, que envergonha, amolgou muito o Tribunal Constitucional. Pior: abalou a confiança. Um tribunal superior é sempre paradigma; e este paradigma irradia mensagens desastrosas para um sistema de justiça já fragilizado. No crédito público, o Estado de Direito ficou mais fraco.

Advogado e ex-líder do CDS.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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