O dia em que a ponto aceitou subir ao palco do seu teatro
É pálida. A sua pele não está habituada às luzes. Veste-se de preto. Para ser invisível na escuridão. Fala baixo, em sussurro. E no entanto as suas palavras são claras. Cristina Vidal trabalha em teatro desde 1978 mas esta é a primeira vez que está em palco. Não só está no palco durante todo o espetáculo, como é ela o centro do espetáculo. É também a primeira vez que agradece os aplausos no final, ao lado de todos os atores a quem "sopra" as falas.
Cristina é ponto. Trabalhou com Vasco Morgado em quase todos os teatros de Lisboa e em 1990 mudou-se para o Teatro Nacional D. Maria II. Neste momento, ela é um dos dois últimos pontos profissionais que existem em Portugal (o outro é João Coelho, que trabalha também naquele teatro) e dos poucos que ainda existem em todo o mundo. Esta é uma profissão em vias de extinção.
A primeira vez que o encenador Tiago Rodrigues os viu a trabalhar foi em 2010 quando estava na sala-estúdio do D. Maria II a criar o espetáculo Se Uma Janela Se Abrisse. "Seduziu-me muito perceber que o ponto é muito mais do que alguém que segura um papel e segue o texto enquanto o ator fala", lembra. O ponto trabalha com os atores desde o primeiro ensaio, ajudando-os a dizer o texto como deve ser e a decorá-lo. "É alguém que conhece muito bem os atores, os seus hábitos e os seus tempos. Tem de saber intervir antes da falha, isso é muito importante. O ponto não quer corrigir a falha que aconteceu, tentar intervir antes do erro." São tantas as nuances do trabalho do ponto. Por exemplo: "O ponto sabe que tem de expor as falhas do ator, apontar-lhe os erros. E isso pode melindrá-lo. Exige uma enorme sensibilidade." E tem um trabalho dificílimo: "Um ponto tem de conhecer bem o texto mas não deve sabê-lo de cor, que é para não correr os mesmos riscos dos atores." Fascinado com tudo isto, Tiago Rodrigues propôs na altura fazer um espetáculo, com texto seu, em que os pontos estariam em palco. Mas, com a saída de Diogo Infante da direção artística, o projeto ficou em suspenso.
A primeira vez que Tiago Rodrigues trabalhou com um ponto foi há três anos, quando, depois de assumir a direção artística do Teatro Nacional, fez ali a trilogia das tragédias. Cristina Vidal fazia parte da equipa. Disse-lhe: "Antes do fim do meu mandato vou querer fazer uma peça contigo." A oportunidade surgiu com o convite do Festival de Teatro de Avignon para que criasse um espetáculo propositadamente para estrear lá: "Pareceu-me que era uma provocação interessante que a protagonista não fosse uma atriz profissional. E também que fosse uma peça que correspondesse a interesses e preocupações que têm que ver com a vida dentro de um teatro", explica. Só faltava convencer a ponto a subir ao palco.
Tiago convidou Cristina para tomar um café no Ponto de Encontro, um sítio onde costuma ir nas Portas de Santo Antão, e desafiou a ser protagonista de um espetáculo. Cristina aceitou.
A história desse encontro está contada no espetáculo Sopro, que o Teatro Nacional D. Maria II estreou neste verão em Avignon e que nesta quinta-feira chega a Lisboa. Ou melhor. Não é bem a história desse encontro. É uma história parecida, faz questão de sublinhar Tiago Rodrigues: "A peça fala de uma ponto que aceita finalmente fazer um espetáculo e que quando é convidada para isso está a discutir com o diretor do seu teatro (porque ele pode ser diretor do teatro mas o teatro é dela) na esplanada do Ponto de Encontro e esse momento despoleta uma série de flashbacks, viagens ao passado que nos permitem descobrir histórias dessa ponto. Claro que há enormes coincidências entre este encontro e o encontro que eu tive com a Cristina Vidal. Há enormes coincidências entre a história desta ponto ficcional da peça e a história real, profissional, da Cristina Vidal, há imensas coincidências entre a história daquele teatro onde ela trabalhou e este teatro onde nós estamos, mas este não é um espetáculo documental e portanto não se pode confiar em absolutamente nada do que é contado ali como relato verídico."
Cristina Vidal aceitou participar em Sopro sob duas condições: que este não fosse um espetáculo biográfico e que não tivesse de trabalhar como atriz. E, portanto, apesar de haver nesta história um fundo de verdade, inspirando-se nas muitas histórias que as pessoas do teatro foram contando a Tiago Rodrigues (sem nunca se dizer o nome das pessoas envolvidas, como se verá), esta não é a história verdadeira de Cristina. E, apesar de estar em cima do palco, o que ela faz ali é exatamente o mesmo que costuma fazer quando está escondida: ela ponta os atores. "Tu não tens de mudar nada, o que muda é o nosso olhar", disse-lhe o encenador. Ao lado de Cristina Vidal estão Beatriz Brás, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Sofia Dias, Vítor Roriz . São eles que vão dando voz às palavras sussurradas pela ponto e às suas muitas histórias. "Sem atores, eu fico calada", diz uma das falas da ponto. E é assim exatamente que este espetáculo funciona. "Não vou ver espetáculos", diz a ponto. "Da plateia não posso ajudar. "
Espetáculo de uma beleza rara, e com uma certa tristeza até, Sopro é feito de amor pelo teatro e pelas pessoas que fazem teatro, isso é claro. Mais do que isso. "Aquilo que eu queria oferecer ao espectador era o modo de falar, o modo de andar, o modo de olhar de alguém que vive na zona sombria do palco", explica Tiago Rodrigues. "E através dela falar não apenas dos pontos mas de todos os técnicos que trabalham nos bastidores e ainda das pessoas que, por esse mundo fora, se realizam através da realização dos outros, que escolheram servir. As pessoas que estão para o outro." Como a ponto Cristina Vidal.