O dia-a-dia na Selva de Calais através de um blog de BD

A desenhadora Lisa Mandel e a socióloga Yasmine Bouagga juntaram-se para contar aos franceses a vida no maior campo de refugiados do país
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Quando chegaram a primeira vez à Selva, em fevereiro, Lisa Mandel e Yasmine Bouagga sentiram como "uma chapada e uma vergonha". O que viram no maior campo de refugiados de França que deve o nome não só à localização - junto a uma floresta, como ao caos que abriga - fez com que a desenhadora e a socióloga francesas se sentissem "noutro mundo". Mas só reforçou a ideia que as levara ali: contar aos franceses - e ao mundo - o dia-a-dia das pessoas que vivem naquela cidade de barracas e tendas enquanto esperam pela hipótese de atravessar o Canal da Mancha em busca de nova vida no Reino Unido.

O resultado foi um blogue publicado no site do Le Monde. Chama-se Notícias da Selva e ali, de segunda a sexta-feira ao meio-dia, as duas amigas contam uma história da vida no campo. Começam sempre por "Cara França", mas podem falar de rixas entre residentes como a de sexta-feira, com tiros e feridos, de um domingo ao som de um velho piano ou de uma ida ao banho turco/salão de cabeleireiro da Selva.

"Quando vimos o que ali se passa não podemos continuar a fingir que não existe", explica Lisa Mandel ao BuzzFeed. E por isso as duas amigas decidiram trazer cá para foras as histórias. "Hoje as condições [do campo] são inaceitáveis. As propostas que o Estado faz são insuficientes em relação às necessidades", explica ainda a desenhadora. Esta marselhesa de 39 anos garante que há muito queria ter uma experiência assim, "mas ainda não tinha encontrado uma porta de entrada".

A oportunidade surgiu em finais de 2015, nos estúdios da rádio France Inter. Mandel participava num programa com o realizador Laurent Cantet que acabava de lançar a petição Apelo de Calais, que denunciava as condições de vida no campo de refugiados. Na altura propôs à desenhadora ir a Calais ver com os seus próprios olhos. Cinco anos antes, Mandel assinara uma BD-reportagem sobre stress psicológico dos refugiados. E quando lhe deram a hipótese de ir a Calais, não hesitou em sujar os sapatos de lama.

Mas não foi sozinha. Logo decidiu ligar a Yasmine Bouagga, a socióloga que para escrever a sua tese de mestrado viveu com refugiados palestinianos e já fizera um documentário sobre os roma em Montpellier. As duas já se conheciam do projeto Sociorama, uma coleção de livros de banda desenhada que junta BD e sociologia. A ideia partiu de Yasmine Bouagga, investigadora do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS), e Lisa Mandel fazia parte do grupo de desenhadores convidados. Desde então as duas têm colaborado em vários projetos.

Com Notícias da Selva, Mandel e Bouagga querem contar a realidade como ela é, sem debates políticos. "Partimos sempre dos encontros que fazemos no local", explica a socióloga que ambiciona falar não só com os residentes do campo mas também com os residentes das localidades ali à volta ou com os camionistas que esperam na autoestrada à espera para atravessar o Eurotunel, ficando muitas vezes à mercê das tentativas dos refugiados para entrar nos seus veículos.

Mais do que uma simples banda desenhada, Notícia da Selva é um blogue que tenta "ir ao mais profundo da vida daquelas pessoas e compreender as lógicas sociais dentro do campo", explica Bouagga.

As duas amigas mudaram-se de armas e bagagens para Calais e mesmo quando um das duas não consegue estar no campo, falam logo pela manhã para combinar o assunto da tira do dia. E assuntos não faltam. Nunca. Seja o café que beberam com os bidunes, os nómadas vindos do Koweit, ou a greve de fome de um grupo de iranianos, ou ainda o banho turco/salão de cabeleireira já antes referido onde "por dez euros se pode passar o dia", conta a socióloga ao Le Monde.

Parte da mobília

Para os residentes, Mandel e Bouagga já fazem "parte da mobília", como as próprias confessam. E ao longo dos meses assumiram vários papéis, como tradutoras ou motoristas de quem precisava.

Viver ali é tudo menos fácil. Estamos a falar de 1500 pessoas - chegaram a ser seis mil em outubro de 2015, antes da evacuação forçada de parte do campo - a viver em barracas de madeira, edifícios devolutos e tendas. Afegãos, sírios, iraquianos, eritreus e outras nacionalidades instalaram-se ali à espera de uma oportunidade de atravessar a Mancha (nos camiões que por ali passam ou no comboio que atravessa o túnel), vivendo em condições de insalubridade. A violência é comum, com rixas entre os residentes a serem bastante comuns.

Várias vezes desmantelada pela polícia francesa, a Selva volta sempre, com novos refugiados a instalarem-se ali. Apesar destas condições difíceis, Mandel e Bouagga garantem que é "impossível deixar a Selva" . E mesmo depois de lançarem o livro A Selva (edições Casterman), uma recolha das tiras publicadas no blogue, pelo menos a socióloga promete continuar o trabalho no campo de refugiados.

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