O covid-19, os mais velhos e as lições a tirar destes tempos de pandemia

O epicentro da pandemia provocada pelo novo coronavírus está agora na velha Europa. Os índices de envelhecimento dos países europeus fazem temer o pior e justificam a preocupação e a tomada de medidas extremas. Vencida a crise, que lições tirar de tudo isto? Falámos com Maria João Valente Rosa, especialista em demografia, o psiquiatra Júlio Machado Vaz e o pneumologista Filipe Froes.
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De repente, de um dia para o outro, a vida como a conhecíamos, puf. Ruas desertas, lojas fechadas, escolas encerradas, voos cancelados, pais e filhos que se viam de relance de manhã e à noite agora o dia todo juntos, filhos adultos que ligavam de semana a semana aos pais, agora todos os dias a lembrar-lhes que têm de ficar em casa, almoços e jantares de família ou amigos adiados sine die, no país do presentismo, muita gente em teletrabalho, outros sem poder trabalhar de casa nem fora dela e outros ainda para quem o mundo não parou, antes acelerou. Gente de máscara e luvas e gel desinfetante e distanciamento físico. Beijos e abraços proibidos até ver.

Por estes dias, em que a maioria está ligada dia e noite às redes sociais, o que não faltam são vídeos humorísticos, memes e quejandos sobre os tempos que vivemos. O "de repente, puf" é bem ilustrado por um vídeo que circula de uma família europeia de férias na neve falando descontraidamente do novo coronavírus. Não há problema, está na China, é longe, não é connosco. Lá em cima, começa a desenhar-se uma avalanche, mas eles não dão por isso. É lá longe, no Irão, não é com eles. A avalanche aproxima-se a grande velocidade. Só percebem quando lhes cai em cima. Puf.

Neste momento, a Europa é o epicentro da epidemia e vê, atónita, outros países fecharem-lhe fronteiras. A Itália vive a situação mais grave, seguida de Espanha. Portugal está em isolamento há uma semana, mas os números ainda não refletem as medidas tomadas pelo governo.

Este sábado, os números oficiais apontavam para 1280 casos confirmados e 12 mortos. O continente europeu, ao contrário daquilo a que está habituado, está particularmente vulnerável.

O novo coronavírus é mais letal entre os mais velhos, com sistema imunitário debilitado e comorbilidades, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos ou respiratórios, e por aí fora, comuns numa população envelhecida como a europeia. Será essa uma das explicações para o facto de a Itália, cujo número de infetados é metade em relação à China, ter aproximadamente o mesmo número de mortos.

Enquanto uma vacina e medicamentos eficazes não forem criados, o mundo, e especialmente a Europa, não poderá respirar de alívio. Para combater a pandemia, os países erguem fronteiras, isolam-se, isolam a população, tomam medidas de contenção. De repente, de um dia para o outro, a vida como a conhecíamos muda.

Os mais velhos são os que estão em maior risco, mas, de acordo com os testemunhos de muitos filhos à beira de um ataque de nervos, parecem ser os menos preocupados. Não deviam, como explica o pneumologista Filipe Froes.

"Todos estamos em risco, mas os mais velhos, e sobretudo aqueles que têm comorbilidades associadas, são os que estão em maior risco, por isso têm de ter mais cuidados e defender-se. É um problema de todos que todos temos de contribuir para resolver. A proteção individual e coletiva serve para nos defendermos a nós, individualmente, e a todos, em conjunto, e evitar a disseminação do vírus na comunidade. É o princípio da imunidade de grupo, que é o objetivo da vacinação em massa."

Como para este vírus ainda não há vacina, é fundamental que cada um cumpra a sua parte e siga as recomendações. Na opinião do médico, de um modo geral, estas estão a ser seguidas. "As pessoas agem dependendo da maneira como compreendem o problema, por isso é preciso explicar-lhes o problema de forma clara, compreensível e acessível, e essa é uma responsabilidade de todos nós."

Júlio Machado Vaz não embarca em generalizações de jornalistas e considera uma injustiça encarar os maiores de 65 como um grupo homogéneo. Para os que resistem a ficar fechados em casa tem explicação, não justificação. "É uma geração que passou por muito e têm a perspetiva de que tudo passa. Com isto cruza-se o facto de serem mais agarrados às suas rotinas, algumas delas verdadeiros rituais, como ler o jornal enquanto bebem o cafezinho, de que é difícil abdicar."

Dito isto, Júlio Machado Vaz chama a atenção de que "o isolamento deve ser físico, não social. Este tem de ser combatido, pelas redes sociais, pelo WhatsApp, pelo telefone, seja de que forma for. No outro dia, uma senhora contava uma história comovente. A filha pegou no carro e pôs-se do outro lado da rua e acenaram uma à outra da janela. É muito importante isto", diz o psiquiatra, que nestes tempos de pandemia se preocupa tanto com a "geração sanduíche", que tem de cuidar dos mais velhos e dos mais novos, como com a sua, que em muitos casos não domina as novas tecnologias e por isso está menos apoiada. "No meu tempo de jovem, analfabeto era quem não sabia ler nem escrever. Agora, há os infoexcluídos, que num momento como este estão muito mais isolados."

E as consequências disto na saúde mental? "Graves. As duas que mais me preocupam são a depressão e o stress pós-traumático. Quando a crise for resolvida, resolve-se a parte física, mas as questões psicológicas arrastar-se-ão. Quando a quarentena acabar, vamos cair todos nos braços uns dos outros, mas isso não significa que não fiquem marcas, e em algumas pessoas não serão apenas marcas."

Para as evitar ou amenizar, o psiquiatra aconselha que se mantenham as rotinas e não se caia na tentação de deslizar para uma terra de ninguém em que os dias se sucedem aos dias em frente ao "quadrado". "Levantar sempre à mesma hora, não andar de pijama, ler, escrever, ouvir música, fazer exercício físico, conversar com os filhos e os amigos, manter-se ativo, sobretudo mentalmente. Se a malta se deixa deslizar, é fácil perder a noção de a quantas anda. Temos de lutar contra isso."

E, quando vencermos o vírus, porque vamos vencê-lo, voltaremos à tal vida como a conhecíamos? Maria João Valente Rosa, especialista em demografia, acha que não. O livro que está para lançar - Tempo sem Idade - fá-la pensar em tudo isto como uma oportunidade de redefinir modos de vida, a forma como nos relacionamos com os outros e com o trabalho, como nos organizamos em sociedade e como olhamos os mais velhos.

Está a acontecer tudo muito depressa e os dados ainda são insuficientes para análises e conclusões, na opinião da investigadora, mas das mudanças a que estamos a ser obrigados inevitavelmente haverá lições a tirar.

"Os tempos que atravessamos são terríveis, mas é importante perceber o que podemos tirar desta experiência. Se não o fizermos, não aprendemos nada. Esta pandemia obrigou-nos a uma paragem brusca que fez acender algumas luzes encarnadas: tomámos maior consciência de que o nosso comportamento influencia a vida dos outros, que fazemos parte de um todo e que temos neste uma responsabilidade individual e coletiva; quando tantos estão em teletrabalho, também é inevitável que repensemos a forma como trabalhamos e dividimos o tempo entre este, a família e o lazer, e tudo isto terá impacto nos nossos estilos de vida, na forma como consumimos, como viajamos, como nos relacionamos com o outro".

Para a especialista em demografia, uma sociedade envelhecida como a europeia não é mais vulnerável, apesar da ameaça do covid-19, mas também neste caso deve ser um ponto de partida para refletir sobre o papel dos mais velhos. "As sociedades envelhecidas são as mais avançadas do ponto de vista social e científico, foram elas que aumentaram a esperança de vida. Os velhos de hoje são diferentes dos do passado e os do futuro serão diferentes dos de hoje. Os do futuro, que são aqueles que hoje estão preocupados com os seus pais e avós por causa desta pandemia, serão ainda mais qualificados, mais próximos das novas tecnologias, mais conectados e terão uma esperança de vida maior, porque a morte não é democrática e chega mais cedo aos que têm menos qualificações, segundo estudos da OCDE. Ora, o aumento da esperança de vida não deve significar ter mais tempo para ser velho, mas sim ter mais anos para viver, e para isso é importante redefinir modos de vida, de trabalho e de formação ao longo da vida. Não concentrar estudo na primeira idade, trabalho intensivo na segunda e reforma na terceira, mas permitir-nos sermos cidadãos plenos em todas as idades."

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