O controverso "beirão com coragem" que teve poderes de "rainha de Inglaterra"
Queria ser lembrado como o "beirão com coragem que fez o melhor possível, mas esteve muitas vezes sozinho". Dizia, aliás, que podiam duvidar de tudo "menos de um beirão honesto".
A vida de Pinto Monteiro, principalmente enquanto Procurador-Geral da República esteve sempre marcada pela controvérsia. Algumas vezes por causa dos processos - casos do Freeport, Face Oculta, Submarinos, a destruição das escutas a Armando Vara e José Sócrates, Apito Dourado e do Noite Branca -, outras vezes porque não poupava nas palavras e uma em particular por causa do "almoço inocente", o primeiro a "sós", com Sócrates que três dias depois seria detido.
"Aconteça o que acontecer, nunca o Engenheiro José Sócrates me perguntou nada sobre justiça", garantiria, nessa altura já ex-PGR, sem esconder que ficou "surpreendido, porque nunca tinha almoçado com José Sócrates". No almoço, a conversa de hora e meia foi sobre "as viagens dele" e do livro que "tinha para me oferecer".
Dois anos antes, a uma semana de abandonar o cargo de PGR, que exerceu de 9 outubro 2006 a 12 de outubro de 2012, durante a apresentação de um livro de sua iniciativa sobre o Ministério Público, Pinto Monteiro arrasou numa frase políticos, jornalistas e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público com o qual manteve uma relação tensa.
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Nesse 4 de outubro de 2012, e depois de uma entrevista à RTP também polémica, Pinto Monteiro foi lapidar: "Existe hoje uma interferência do poder executivo no poder judicial e que consiste, fundamentalmente, em resolver problemas políticos através de processos judiciais. Atente-se quantos políticos pós-25 de Abril tiveram contra si processos instaurados, que criam correntes de opinião alimentadas por alguma Comunicação Social, e que, após investigações completas, se conclui não ter existido qualquer ilícito criminal."
Mas não se ficou por aqui e detalhou, sem reservas, o que pensava sobre tudo e quase todos. Sobre o jornalismo não tinha dúvidas. Era para ele claro que "se um órgão de Comunicação Social, depois seguido por outros, disser que o político X é culpado, de nada ou de muito pouco adiantará o recurso aos tribunais, porque se os tribunais entenderem que o político não é culpado é porque houve pressões, se a investigação não descobrir qualquer ilícito é porque o Ministério Público é ineficaz. A conclusão tem que ser a da Comunicação Social, mesmo que não exista qualquer fundamento sério para isso".
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E nessa análise, a ineficácia e a "falta de coesão" do MP tinha uma explicação que tinha tanto de óbvia como de inacreditável: "Toca as raias do inconcebível que o próprio vice-Procurador-Geral da República e os magistrados que representam o Procurador-Geral da República nos tribunais superiores sejam nomeados pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Podem assim ser nomeados magistrados que tenham ideias contrárias às do Procurador-Geral da República, que facilmente poderão impedir o cumprimento de um programa que o Procurador-Geral da República pretenda seguir".
O problema, no seu entender, era mais lato e estendia-se, com consequências, ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal, na altura dirigido por Cândida Almeida e, novamente, por "culpa" do Conselho Superior do Ministério Público, que era "um conselho tendencialmente corporativo, independentemente do valor dos membros que o compõem. Acresce que sete dos magistrados são eleitos pela classe, o que na prática tem significado serem eleitos pelo sindicato ou com o apoio deste, que os escolhe".
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O que não fazia sentido? "Sendo o DCIAP diretamente dependente da Procuradoria-Geral da República e, sendo o Procurador-Geral da República responsável pelo mesmo, deveria ter o direito de nomear o diretor, o que não tem acontecido, cabendo tal nomeação mais uma vez ao CSMP", explicou nesse dia.
Pinto Monteiro não escondia sequer que a direção da PJ estava mal entregue nas mãos de políticos. O que fazia sentido, argumentava, e levaria a que "tudo seria mais fácil e transparente" era "o diretor da Polícia Judiciária depender do Procurador-Geral da República e não do ministro da Justiça".
O homem que disse de si próprio, enquanto Procurador-Geral da República, ter "os poderes da rainha de Inglaterra" -- numa entrevista ao DN a 3 de agosto de 2020 -- foi alvo de veementes críticas do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que classificou o mandato de Pinto Monteiro como "o período mais negro da história do Ministério Público democrático".
"Viviam-se tempos muito conturbados decorrentes da política de ostensiva hostilização e despudorada tentativa de manipulação das magistraturas e do poder judicial pelo governo de Sócrates", disse, em 2015, João Palma, dirigente do sindicato.
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Pinto Monteiro, que chegou a suspeitar ser alvo de escutas - "eu próprio tenho muitas dúvidas que não tenha telefones sob escuta. Penso que tenho um telefone sob escuta. Às vezes faz uns barulhos esquisitos" -, começou a sua vida na justiça na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, foi dirigente do Centro de Estudos Judiciários e da Associação Sindical de Juízes Portugueses, foi juiz conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça, alto comissário-adjunto na Alta Autoridade Contra a Corrupção e presidente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol.
O antigo PGR nasceu em Porto de Ovelha, localidade no Concelho de Almeida, distrito da Guarda, mas cedo foi para o Sabugal onde fez a escola primária e depois para a Guarda onde fez o liceu. Em 2013 foi agraciado, por Cavaco Silva, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo. Morreu ontem. Tinha 80 anos.