A cooperação espacial entre a Rússia e os países ocidentais pode estar a ser comprometida com o conflito na Ucrânia. Quem o diz é Carlos Fiolhais, físico e professor universitário português. Na opinião do cientista, "a cooperação internacional está a ser posta em causa. Está a ser vítima da guerra"..Criada em 1998 e ocupada a partir do ano 2000, a Estação Espacial Internacional (EEI) é o exemplo maior da colaboração científica entre a Rússia e o Ocidente. Dividida em dois módulos, um russo e um americano, já foi ocupada por 251 astronautas e alguns turistas espaciais. Atualmente, estão dez pessoas a bordo, incluindo três cosmonautas russos recém-chegados. Quando entraram na EEI, envergavam fatos amarelos e azuis... as cores da bandeira ucraniana, algo que foi considerado uma "coincidência" pela Roscosmos (a agência espacial russa)..Fruto da imposição de sanções à Rússia pela comunidade internacional, o diretor-geral da Roscomos ameaçou usar a Estação Espacial como um objeto de retaliação. Isto numa altura em que está a ser preparado um voo - já planeado antes do conflito - que vai trazer de volta à Terra o astronauta norte-americano Mark Vande Hei a bordo de um foguetão russo, no dia 30 de março. Inicialmente, pensou-se que o regresso do astronauta estivesse em risco, algo que entretanto foi retificado e esclarecido por ambas as partes..Tendo isto em conta, Carlos Fiolhais considera que "as palavras do diretor da Roscosmos são bluff". Conforme explica, "as duas partes precisam uma da outra. Por exemplo, o módulo americano fornece eletricidade à parte russa". Ainda assim, a Roscosmos considerou que a Europa arruinou a cooperação espacial com a Rússia e que, por isso, vão recorrer a novos parceiros..Perante isto, no final de abril as posições da Agência Espacial Europeia (internacionalmente reconhecida como ESA) e da NASA em relação à colaboração com a Rússia vão ser revistas. Segundo revelou o diretor-geral da ESA, Josef Aschbacher, "há uma lista de itens de cooperação que devem ser revistos e reavaliados, por estarem intimamente ligados à Rússia", com o Reino Unido a recorrer à SpaceX para enviar 36 satélites inicialmente lançados do Cazaquistão..No dia 17 de março, a ESA tornou pública a decisão de cancelar a missão ExoMars..Destinada a procurar sinais de vida em Marte, a missão estava a ser organizada em conjunto com a Roscosmos, uma vez que o rover (veículo utilizado para explorar a superfície de planetas) dependia de componentes russos considerados "fundamentais" pela ESA. "Depois de adiamentos tudo estava pronto para este ano se iniciar a missão, agora só daqui a dois anos volta a haver outra janela de oportunidade, que depende das posições relativas da Terra e Marte", explica Carlos Fiolhais..Na opinião do cientista, "terminar o projeto seria uma desilusão, tendo em conta o dinheiro já investido e também o facto de EUA e China já estarem em Marte". Por isso, considera, "a solução pode passar por procurar outro parceiro" para o lançamento..Apesar de colaborarem atualmente na Estação Espacial Internacional, EUA e Rússia têm um passado de tensões científicas, iniciadas em 1957 com o lançamento do satélite russo Sputnik, quando se iniciou a corrida ao espaço, que terminou quando os EUA conseguiram quatro alunagens entre 1969 e 1972. Com isto, as tensões acalmaram e, em 1975, astronautas americanos e cosmonautas russos encontraram-se no espaço, abrindo assim a porta a colaborações que se mantêm até hoje..No entanto, perante o panorama internacional, a Rússia pode ter outro parceiro estratégico: a China, "uma força importantíssima na geoestratégia política e militar e na esfera na científica", que já divulgou planos para construir uma base de lançamento na China e, ao mesmo tempo, a ambição de chegar a Marte dentro de cinco anos. "A viagem a Marte é um sonho da Humanidade e esse talvez seja o motivo para uma nova corrida ao espaço, mas . Mas devia-se ir a Marte numa missão internacional e num clima de paz", considera Carlos Fiolhais. Se até agora as maiores colaborações em termos espaciais foram feitas, sobretudo, entre Rússia e EUA, com o conflito o panorama pode alterar-se.."A lógica de confronto fará com que a Rússia se aproxime da China, e vice-versa uma vez que está muito avançada nos sistemas de computação e de inteligência artificial, para não falar da genética e de outros ramos da biologia". Do outro lado, os países europeus (e, neste caso, a ESA) podem acabar por se juntar à NASA, que já tem, internamente, a colaboração com a empresa privada Space X, com a qual já enviou astronautas para a Estação Espacial Internacional..Apesar destes posicionamentos, Carlos Fiolhais alerta que "a China, que é hoje uma potência científica, pode não se querer colar a ninguém e adotar uma estratégia própria, mas, tanto quanto se vê ao dia de hoje, os blocos, na política, na defesa e na ciência, serão Rússia-China e EUA-Europa", considera..Historicamente, a Ucrânia tem tido um papel importante em termos científicos. Ainda na União Soviética, foi no país que nasceu Sergei Koroliov, o principal mentor do programa espacial soviético.."É preciso, antes de mais, pôr termo à guerra. Estão a ser bombardeadas instalações universitárias e científicas na Ucrânia, como aconteceu em Kharkiv, e também porque em tempos de guerra não se pode fazer ciência", alerta Carlos Fiolhais, que dá o exemplo: "Albert Einstein é um exemplo de um grande cientista e também pacifista. Apesar de ter vivido duas guerras mundiais, sempre foi contra a guerra, contra todas as guerras, e o seu exemplo deve saber ser seguido.".rui.godinho@dn.pt