O colombiano que vive em Bogotá como um estrangeiro

Juan Gabriel Vásquez veio a Portugal receber o prémio literário atribuído ao seu quarto romance, intitulado As Reputações
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Pode um cartoonista intervir na política através dos seus desenhos diários num jornal? Essa pergunta está respondida no romance As Reputações, que o escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez publicou em Portugal em 2015 e que recebeu na semana passada o Prémio Casa da América Latina em Lisboa. Escolha de um júri que encontra na narrativa "a reflexão sobre a memória pessoal e coletiva de um país onde o esquecimento é a única coisa democrática". Este romance já fora agraciado com o Prémio da Real Academia Espanhola.

Autor de romances "obsessivamente colombianos", Vásquez regressou ao seu país apenas há quatro anos, após ter vivido 16 em Paris, Bélgica e Barcelona. Por isso, confirma, "é olhado com alguma desconfiança pois escrevi sempre fora da Colômbia. Mas é esse olhar estranho que produz as tensões necessárias ao romance". Não é o primeiro a viver sob a maldição que rege os grandes escritores da América Latina, a de produzir no estrangeiro a poesia e a prosa que caracterizam a literatura do continente. Vásquez não o vê como um problema: "Em 1900, o poeta nicaraguense Rubén Dario foi para Paris para ser poeta. Desde então que há muitos casos semelhantes, tanto que o melhor romance colombiano escreveu-se no México ou em Washington; a boa obra peruana de Mario Vargas Llosa em Paris e Madrid. É uma geração, a dos nossos "pais", que saiu da América Latina para a olhar melhor. Já faz parte da nossa tradição."

Pergunta-se a Juan Gabriel Vásquez se o regresso à Colômbia alterou a sua forma de escrever: "Também me perguntava o que iria mudar, porque só fui capaz de escrever os três romances anteriores por estar no estrangeiro. Tinha distância para observar um país incompreensível e explorá-lo na ficção. Ao voltar, no entanto, era tudo tão diferente que me sentia a viver fora do meu país. Outra maldição que pode existir sobre a obra de Vásquez é a perseguição da obra do grande colombiano, Gabriel García Marquéz. Nega-o: "Não é um peso mas sorte podermos escrever na tradição enriquecida por ele. Cem Anos de Solidão transformou a nossa língua no romance e abriu portas para ir a outros lugares. Além de que o seu método não me foi útil, as minhas influências eram outras: Llosa, Borges, Onetti, Roth, Conrad, Dostoiévski ou Don de Lillo."

É quase impossível ler As Reputações e não recordar o atentado ao Charlie Hebdo que acontece alguns meses depois da edição deste romance. Vásquez concorda: "A reflexão sobre o poder do cartoon como arma política sempre foi muito clara na Colômbia, mas isso não era tão claro para os leitores europeus. Antes dos atentados, os leitores franceses questionavam o porquê do poder do "meu" cartoonista e não acreditavam que pudesse ser uma pessoa temida e ameaçada. Aí aconteceu o Charlie Hebdo... A ferramenta principal de um cartoon é o humor, que impossibilita a resposta por parte do retratado. Um artigo de opinião pode ter resposta, um desenho não, ou cai-se no ridículo."

Uma das questões que se punha ao autor era conseguir exprimir por palavras o que o seu protagonista fazia com os cartoons: "Era um risco e em alguns momentos duvidei que o conseguisse construir. Daí que me tenha confrontado com uma escrita muito diferente dos livros anteriores. Com uma linguagem mais rica em metáforas e imagens para dar a ver o mundo através dos olhos de um cartoonista."

Para compor o protagonista, Vásquez socorreu-se da troca de impressões com um importante cartoonista colombiano: "Foi uma das minhas fontes para a escrita do romance, Vladdo, que me respondeu a todas as dúvidas com muita paciência. Permitiu-me ver como trabalhava e partilhou várias ideias sobre a profissão. Até me contou o que lhe aconteceu com um militar muito importante na Colômbia, que lhe pediu para ser recebido com o objetivo de que não o continuasse a desenhar com óculos à Pinochet e a sorrir com os dentes tortos pois tinha mudado de óculos e tratado da boca. Quando isto acontece, quer dizer que o cartoon tem muito poder.

Apesar de ter alterado o seu registo neste romance, Vásquez não se preocupou: "Cada livro é uma aprendizagem sempre diferente do anterior e do seguinte. Nunca acabam as lições na escrita de ficção. Há que aprender a escrever cada livro desde o zero. As Reputações ensinou-me a manejar a linguagem sob a importância do visual." Esclarece que o próximo livro a ser traduzido em Portugal, La Forma de las Ruinas, é bastante diverso. Será que os leitores aceitam essa alteração? "Podem não gostar, mas é o que acontece comigo. Cada romance é uma revolução contra o anterior, uma busca que ainda não tinha feito. Estou sempre em guerra contra o livro anterior", diz.

Juan Gabriel Vásquez considera que o romance ainda é a melhor leitura do mundo: Porque nos revela algo que mais nada explica. A História e o jornalismo contam a realidade de um modo cada vez mais imprescindível mas há espaços da experiência humana onde não vão. Disso, ocupa-se o romance. Se não o fizer, é redundante." E as novas expressões tecnológicas? Resposta rápida por parte de Juan Gabriel Vásquez: "As redes sociais distraem e convertem o debate público em algo ligeiro e carente de reflexão. Não proporcionam o silêncio da meditação e de uma velocidade mais baixa para nos fixarmos no que importa, nem oferecem conhecimento", afirma.

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