"O cinema não é a minha cena", confessa o papa Francisco a Wim Wenders
Wim Wenders é um fã confesso do Papa, foi essa a certeza com que se ficou na entrevista realizada ao realizador alemão durante o Festival de Cannes. Antes de começar a filmar, cineasta e protagonista estiveram [só] cinco minutos juntos, durante os quais o papa Francisco disse a Wenders que "tinha ouvido falar muito de mim mas que não tinha visto nenhum dos meus filmes." Francisco acrescentou: "Não percebo grande coisa de cinema, é preciso que compreenda isso. O cinema não é a minha cena". Ou seja, ficou a situação esclarecida, diz Wenders, que sabe que até há poucas semanas o Papa ainda não vira o filme. Entretanto, enviou ao cineasta uma mensagem a dizer que "algumas pessoas no Vaticano já o viram e ficaram muito contentes".
O que pretendeu desde logo evitar neste filme-entrevista?
Não queria que fosse dirigido apenas a pessoas religiosas. Nem eu, nem o Papa Francisco. Depois de fazer este documentário toda a minha ideia de comunidade mudou! Mudou sobretudo o que pensava sobre responsabilidade comunitária, levar a sério os temas da igualdade social, exclusão e a relação ambiental com o nosso planeta. O que o Papa fala neste filme é sobre coisas muito terrenas. Não é um Papa preocupado com os ouvidos de Deus, mas sim como nos olhamos uns para os outros.
O que acontecia naqueles momentos antes de dizer a palavra "ação"?
Não dizia "ação"!
Acredita que mais tarde ou mais cedo vai acabar por querer ver o filme?
Não sei! Adorava poder mostrar-lhe o filme, mas, por outro lado, sei que tem outras coisas na cabeça.
Como é que veio parar a este projeto?
Não sonhei um dia fazer um filme como este! Mas a partir do momento em que o vi no balcão do Vaticano a ser eleito como Papa e a escolher o nome de Francisco, achei-o logo um homem com muita coragem, sobretudo por ser o primeiro Papa a ter coragem para adotar um nome que era dinamite na Igreja. Francisco simboliza a maior revolução na História da Igreja. Desde essa altura que percebi que aquele homem tinha algo bom dentro dele e fiquei muito curioso. Tanto que até acompanhei o seu primeiro ano como Papa. Fiquei muito impressionado mas nunca pensei que um dia viria a fazer um filme sobre ele... Até que houve um dia em que recebi uma carta gigante do Vaticano em italiano. Uma carta onde me perguntavam se estaria interessado em fazer um filme sobre o Papa. Fiquei muito espantado: porque razão eu!? Mais tarde, o ministro da Comunicação do Vaticano, um homem que estudou comunicação e que na juventude foi diretor de um cineclube em Roma, informou-me que foram os meus filmes a desencadear a escolha. Esse mesmo ministro dizia-me que não era uma comissão, que era apenas uma sugestão e que se eu estivesse interessado iriam fazer tudo para que o filme se concretizasse, embora a produção não fosse a cargo do Vaticano, que eu teria de arranjar produtores. Disseram-me também que o conceito seria todo da minha responsabilidade e que não iriam interferir em nada. Enfim, gostei do que ouvi e disse que sim. Demorou cinco anos a ser feito, embora eu estivesse convencido que em dois anos teria o filme pronto. O que demorou mais foi encontrar o conceito - poderia fazer o que me apetecesse!
O Papa fez-lhe alguma pergunta durante a rodagem?
Sim! Quando viu pela primeira vez o cenário montado! Espantou-se por ver o seu lugar e as câmaras e não perceber onde eu ficaria sentado... "Onde é que o Wim vai ficar?", perguntou... Expliquei que a minha ideia era filmá-lo de modo a que parecesse que ele estava a olhar para todos e mostrei-lhe onde estava atrás da câmara, demonstrando-lhe que me poderia ver através do teleponto - em vez de ter as respostas tinha o meu reflexo. De algum modo, quis que o privilégio de estar em frente a ele não fosse só meu. A partir daí, tive um entrevistado 100% intenso, sempre muito concentrado.
Quantas vezes teve essas sessões de perguntas?
Estivemos quatro vezes olhos nos olhos. Sempre duas horas de cada vez. Saíamos completamente arrasados, eu pelo menos, estava exausto, sobretudo porque quis falar em espanhol. Na altura, estava um pouco enferrujado e tentei poli-lo. Mesmo assim, foi uma canseira!
Porque razão não apostou em falar com o Papa sobre a sua vida antes de ser Papa?
Não queria que o filme fosse uma biografia. Além disso, pensei que por ser um homem modesto não iria gostar de falar de si próprio. Ele gosta e quer falar para o povo. Os seus temas preferidos são a pobreza, a relação do Homem com a Natureza e a paz entre as religiões. Sabe que mais? Eu também não gosta desta cultura dominante do indivíduo, onde em tudo o que lemos o mais importante parece ser a coscuvilhice e a vida das pessoas. Já para não falar que temos livros escritos sobre isso e programas de televisão que documentam como foi a sua infância, as suas dificuldades, a operação que teve quando era jovem, etc. Isso não queria, o meu tempo com ele era tão precioso e a sua palavra tão poderosa!
Mesmo assim, chega a confessar que tem saudades de ouvir os fiéis a confessar.
Esse tipo de revelações mais pessoais foi ele quem as trouxe para a conversa, nunca lhe perguntei nada sobre isso. Ao todo fiz-lhe 55 perguntas. 55 perguntas o mais completas e plurais possíveis, excluindo tudo o que fosse pessoal, exceto os seus gostos musicais. De alguma forma, ele, por vezes, saltava de assunto para assunto e fiquei muito feliz de ter encontrado uma maneira de fazer uma conclusão no seu discurso. Ao dizer que todos nós podemos ser apóstolos da beleza está a encontrar um final para o filme. Também não tive de dizer "corta".
Qual foi a sua grande surpresa deste encontro com o Papa?
Nunca esperei tamanho otimismo interminável nem que fosse um homem tão positivo, sobretudo por ter visto tanta miséria e ter conhecimento de como está mal o planeta. E a sua energia é mesmo contagiante... Ficava a olhar para ele e a interrogar-me como conseguia buscar aquela força! Aquilo não é técnica nem nada disso, é apenas carisma! E ele mudou desde que foi Papa. O seu tradutor contava-me que antes de ser Papa estava sempre com cara de poucos amigos e que até era apelidado de "rabugento". Depois de ser Papa, garante-me, aquele ar dele mudou! Esse semblante mudou para sempre...
Muito do que vemos ali não é filmado pela sua equipa...
Pois não, é feito por equipas de televisão e pela própria equipa do Papa. Não consegui estar sempre a acompanhá-lo. Na altura, estava a rodar o Submersos. Este é também um filme pobre e não podíamos estar sempre a viajar... Mas o que é incrível é que há sempre alguém a filmá-lo. Hoje quase que o Papa já não vê rostos, apenas telemóveis apontados para si. É quase trágico esse mar de telefones...Perguntei-lhe como é que ele enfrenta essas multidões de realizadores e respondeu-me que, ainda assim, procura os rostos, que não consegue apenas olhar para os ecrãs anónimos dos telemóveis.