Aqueles sábados à tarde, no início dos anos 1980, a ver os episódios de Cosmos na RTP, são inesquecíveis. Para o adolescente que eu era (e até hoje), Carl Sagan passou a ser sinónimo de cientista, capaz de explicar dos micróbios aos buracos negros. "Sagan não só foi um grande cientista na área da astrofísica - estudou o efeito estufa em Vénus, defendeu a existência de mares em luas de Júpiter e Saturno, ajudou em projetos da NASA de sondas no sistema solar e trabalhou na possibilidade de vida extraterrestre - como foi um grande comunicador de ciência, talvez o maior até hoje. Ele usou todos os meios ao seu alcance para fazer chegar a ciência ao grande público e nessa área o seu maior feito foi a série televisiva Cosmos. Uma Viagem Pessoal emitida em 1980, transmitida em mais de 60 países e que atingiu mais de 600 milhões de espectadores", afirma Carlos Fiolhais, físico português e ele próprio grande divulgador da ciência, autor de livros como Física Divertida, Nova Física Divertida, Darwin aos Tiros (com David Marçal) ou A Ciência em Portugal..Depois da série produzida pela BBC e a Polytel e emitida primeiro pela PBS, li o livro, na verdade o guião de Sagan para a produção do documentário. Sugestão de um professor de Geografia, em Setúbal. E Carlos Fiolhais acrescenta: "Também foi um formidável sucesso, mostrando que os livros não são inimigos da ciência. Ele escreveu, além desse, duas dezenas de outros livros, alguns dos quais alcançando o estatuto de bestsellers mundiais. Em Portugal foram praticamente todos publicados pela Gradiva. Destaco O Mundo Infestado de Demónios, em que defende a ciência contra a pseudociência. Nesse livro previu a atual situação no mundo, onde se encontra uma 'mistura explosiva' entre poder e ignorância. Tentou também o cinema de ficção científica, com o filme Contacto, baseado num romance com o mesmo título, sobre um eventual encontro de civilizações e no qual apareciam 'buracos de verme', túneis cósmicos permitidos pela teoria da relatividade geral de Einstein. Infelizmente já não pôde ver o filme. O seu grande sucesso deveu-se à sua presença pessoal, mas também e principalmente à sua capacidade imaginativa. Para apresentar a história do cosmos, desde o Big Bang, inventou um calendário anual em que os primeiros humanos só apareciam às 22h24m do dia 31 de dezembro. Inventou igualmente a expressão 'pálido ponto azul' para designar a Terra, vista por uma sonda bem ao longe no sistema solar. Falava dos biliões e biliões de estrelas e fez-nos sonhar com as viagens a elas. E expunha como o ser humano era filho das estrelas.".Verdadeiro entusiasta de Sagan, o professor da Universidade de Coimbra destaca como as metáforas do cientista americano, nascido em 1934 numa família operária de judeus vindos da Ucrânia, "eram muito atraentes, por exemplo: 'Se queres fazer uma boa tarte de maçã a partir do início, tens primeiro de inventar um universo.' Ou: 'O cosmos está dentro de nós. Somos feitos da matéria das estrelas. Somos um meio para o universo se autoconhecer."' Ou ainda: 'Pretensões extraordinárias requerem provas extraordinárias." A mensagem dele em Cosmos é muito clara no final: nós somos a consciência do universo, no sentido em que só nós, que saibamos, o podemos compreender. É nossa missão compreender o universo. Como ele disse numa frase lapidar: "A nossa ambição deve ser o conhecimento.' Em resumo, foi Sagan que nos ensinou o nosso lugar no cosmos, que parece insignificante mas que afinal é extraordinário"..Carlos Fiolhais estava a doutorar-se na Alemanha quando surgiu a série e o livro. Tinha 24 anos. E confessa que "Sagan e outros autores de divulgação científica alimentaram o meu desejo de saber mais ciência e de a dar a saber aos outros". E lembra-se especialmente de um capítulo de Cosmos intitulado "A persistência da memória", onde Sagan faz "um extraordinário elogio do livro". Prossegue: "Citei-o muitos anos mais tarde na sala do Senado quando tive a honra de ser diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Regressado a Portugal em 1982, apercebi-me de que existia uma nova editora, que começava a publicar os livros dele (e de outros: Richard Feynman, Hubert Reeves, Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, etc.). Contactei o editor, Guilherme Valente, que era o responsável por essa verdadeira lufada de ar fresco em Portugal. Fala-se até da 'geração Gradiva', os muitos jovens que cresceram fascinados com essas leituras.".Foi o início de uma bela amizade entre o cientista e o editor. Carlos Fiolhais passou a colaborar em traduções e prefácios e a dar sugestões de obras. E em 1991 escreveu o seu primeiro livro, o Física Divertida. O físico afirma ter sido um tempo grande na ciência portuguesa: "Lembro-me com saudade do José Mariano Gago, que também era admirador de Sagan e que decidiu apostar na divulgação da ciência." E a seguir, uma passagem de testemunho: "Para mim foi muito estimulante receber das mãos de um editor 'valente' o testemunho da coleção Ciência Aberta a partir do número 200. Posso pôr no currículo que dirijo a coleção que tem os livros do Sagan, que tocaram tantas mentes de todas as idades. O seu exemplo serve-me a mim e a vários outros de inspiração.".Não fui para um curso de ciências, mas Sagan, Gould e Feyman fazem parte das minhas leituras de adolescência e jovem adulto. E Guilherme Valente é para mim um nome incontornável. Sobre a sua edição de Cosmos, e sobretudo sobre o cientista que morreu em 1996, o editor diz: "Para além do cientista de referência distinguido na sua área de investigação, Sagan dominava um largo espectro de conhecimento científico e humanístico. Um aluno português de Cornell contava-me que ele era um utilizador mítico da singular biblioteca da universidade, com inúmeros originais de documentos preciosos de todo o mundo - aberta toda a noite, note-se. Tudo isso está presente nos seus vários livros e particularmente na obra-prima Cosmos. Um clássico hoje mais atual do que nunca. Sagan divulgou a ciência mais de ponta no limiar do que viria e por isso nem na vertente científica da obra necessitaria hoje de significativos acrescentos.".Também rendido à genialidade de Sagan, cuja figura e voz funcionavam às mil maravilhas na comunicação de ciência, Guilherme Valente sublinha: "Quanto à mensagem vibrante que perpassa o Cosmos ela ecoa hoje ainda com mais força no leitor, convocando o melhor de nós, da nossa humanidade - e é por isso, penso eu, que ouvir, ver, ler Carl Sagan comove até às lágrimas, como em muitos momentos tive ocasião de sentir e observar.".Sobre a defesa do legado de Sagan, Carlos Fiolhais diz: "Nunca conheci o Sagan pessoalmente, mas tenho a impressão que através dos livros e dos filmes, o conheço intimamente. Quem o conhece bem mais intimamente é a sua mulher Ann Druyan, que visitou Portugal e a quem há pouco pude entrevistar, juntamente com o jornalista Vasco Trigo, a propósito do seu livro Cosmos. Mundos Possíveis, que é uma homenagem muito pessoal a Sagan". Terceira mulher do cientista americano, Ann Druyan é mãe de um dos seus cinco filhos. Vários deles também escrevem sobre ciência, perpetuando o apelido, mas também a mensagem, de Carl Sagan.
Aqueles sábados à tarde, no início dos anos 1980, a ver os episódios de Cosmos na RTP, são inesquecíveis. Para o adolescente que eu era (e até hoje), Carl Sagan passou a ser sinónimo de cientista, capaz de explicar dos micróbios aos buracos negros. "Sagan não só foi um grande cientista na área da astrofísica - estudou o efeito estufa em Vénus, defendeu a existência de mares em luas de Júpiter e Saturno, ajudou em projetos da NASA de sondas no sistema solar e trabalhou na possibilidade de vida extraterrestre - como foi um grande comunicador de ciência, talvez o maior até hoje. Ele usou todos os meios ao seu alcance para fazer chegar a ciência ao grande público e nessa área o seu maior feito foi a série televisiva Cosmos. Uma Viagem Pessoal emitida em 1980, transmitida em mais de 60 países e que atingiu mais de 600 milhões de espectadores", afirma Carlos Fiolhais, físico português e ele próprio grande divulgador da ciência, autor de livros como Física Divertida, Nova Física Divertida, Darwin aos Tiros (com David Marçal) ou A Ciência em Portugal..Depois da série produzida pela BBC e a Polytel e emitida primeiro pela PBS, li o livro, na verdade o guião de Sagan para a produção do documentário. Sugestão de um professor de Geografia, em Setúbal. E Carlos Fiolhais acrescenta: "Também foi um formidável sucesso, mostrando que os livros não são inimigos da ciência. Ele escreveu, além desse, duas dezenas de outros livros, alguns dos quais alcançando o estatuto de bestsellers mundiais. Em Portugal foram praticamente todos publicados pela Gradiva. Destaco O Mundo Infestado de Demónios, em que defende a ciência contra a pseudociência. Nesse livro previu a atual situação no mundo, onde se encontra uma 'mistura explosiva' entre poder e ignorância. Tentou também o cinema de ficção científica, com o filme Contacto, baseado num romance com o mesmo título, sobre um eventual encontro de civilizações e no qual apareciam 'buracos de verme', túneis cósmicos permitidos pela teoria da relatividade geral de Einstein. Infelizmente já não pôde ver o filme. O seu grande sucesso deveu-se à sua presença pessoal, mas também e principalmente à sua capacidade imaginativa. Para apresentar a história do cosmos, desde o Big Bang, inventou um calendário anual em que os primeiros humanos só apareciam às 22h24m do dia 31 de dezembro. Inventou igualmente a expressão 'pálido ponto azul' para designar a Terra, vista por uma sonda bem ao longe no sistema solar. Falava dos biliões e biliões de estrelas e fez-nos sonhar com as viagens a elas. E expunha como o ser humano era filho das estrelas.".Verdadeiro entusiasta de Sagan, o professor da Universidade de Coimbra destaca como as metáforas do cientista americano, nascido em 1934 numa família operária de judeus vindos da Ucrânia, "eram muito atraentes, por exemplo: 'Se queres fazer uma boa tarte de maçã a partir do início, tens primeiro de inventar um universo.' Ou: 'O cosmos está dentro de nós. Somos feitos da matéria das estrelas. Somos um meio para o universo se autoconhecer."' Ou ainda: 'Pretensões extraordinárias requerem provas extraordinárias." A mensagem dele em Cosmos é muito clara no final: nós somos a consciência do universo, no sentido em que só nós, que saibamos, o podemos compreender. É nossa missão compreender o universo. Como ele disse numa frase lapidar: "A nossa ambição deve ser o conhecimento.' Em resumo, foi Sagan que nos ensinou o nosso lugar no cosmos, que parece insignificante mas que afinal é extraordinário"..Carlos Fiolhais estava a doutorar-se na Alemanha quando surgiu a série e o livro. Tinha 24 anos. E confessa que "Sagan e outros autores de divulgação científica alimentaram o meu desejo de saber mais ciência e de a dar a saber aos outros". E lembra-se especialmente de um capítulo de Cosmos intitulado "A persistência da memória", onde Sagan faz "um extraordinário elogio do livro". Prossegue: "Citei-o muitos anos mais tarde na sala do Senado quando tive a honra de ser diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Regressado a Portugal em 1982, apercebi-me de que existia uma nova editora, que começava a publicar os livros dele (e de outros: Richard Feynman, Hubert Reeves, Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, etc.). Contactei o editor, Guilherme Valente, que era o responsável por essa verdadeira lufada de ar fresco em Portugal. Fala-se até da 'geração Gradiva', os muitos jovens que cresceram fascinados com essas leituras.".Foi o início de uma bela amizade entre o cientista e o editor. Carlos Fiolhais passou a colaborar em traduções e prefácios e a dar sugestões de obras. E em 1991 escreveu o seu primeiro livro, o Física Divertida. O físico afirma ter sido um tempo grande na ciência portuguesa: "Lembro-me com saudade do José Mariano Gago, que também era admirador de Sagan e que decidiu apostar na divulgação da ciência." E a seguir, uma passagem de testemunho: "Para mim foi muito estimulante receber das mãos de um editor 'valente' o testemunho da coleção Ciência Aberta a partir do número 200. Posso pôr no currículo que dirijo a coleção que tem os livros do Sagan, que tocaram tantas mentes de todas as idades. O seu exemplo serve-me a mim e a vários outros de inspiração.".Não fui para um curso de ciências, mas Sagan, Gould e Feyman fazem parte das minhas leituras de adolescência e jovem adulto. E Guilherme Valente é para mim um nome incontornável. Sobre a sua edição de Cosmos, e sobretudo sobre o cientista que morreu em 1996, o editor diz: "Para além do cientista de referência distinguido na sua área de investigação, Sagan dominava um largo espectro de conhecimento científico e humanístico. Um aluno português de Cornell contava-me que ele era um utilizador mítico da singular biblioteca da universidade, com inúmeros originais de documentos preciosos de todo o mundo - aberta toda a noite, note-se. Tudo isso está presente nos seus vários livros e particularmente na obra-prima Cosmos. Um clássico hoje mais atual do que nunca. Sagan divulgou a ciência mais de ponta no limiar do que viria e por isso nem na vertente científica da obra necessitaria hoje de significativos acrescentos.".Também rendido à genialidade de Sagan, cuja figura e voz funcionavam às mil maravilhas na comunicação de ciência, Guilherme Valente sublinha: "Quanto à mensagem vibrante que perpassa o Cosmos ela ecoa hoje ainda com mais força no leitor, convocando o melhor de nós, da nossa humanidade - e é por isso, penso eu, que ouvir, ver, ler Carl Sagan comove até às lágrimas, como em muitos momentos tive ocasião de sentir e observar.".Sobre a defesa do legado de Sagan, Carlos Fiolhais diz: "Nunca conheci o Sagan pessoalmente, mas tenho a impressão que através dos livros e dos filmes, o conheço intimamente. Quem o conhece bem mais intimamente é a sua mulher Ann Druyan, que visitou Portugal e a quem há pouco pude entrevistar, juntamente com o jornalista Vasco Trigo, a propósito do seu livro Cosmos. Mundos Possíveis, que é uma homenagem muito pessoal a Sagan". Terceira mulher do cientista americano, Ann Druyan é mãe de um dos seus cinco filhos. Vários deles também escrevem sobre ciência, perpetuando o apelido, mas também a mensagem, de Carl Sagan.