"O chumbo do OE 2019 terá como consequência inevitável a queda do governo"

Primeira parte de uma grande entrevista do DN ao primeiro-ministro, António Costa
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Podemos começar pelo que parece ser uma mudança de posição doutrinal do PS sobre o caso Sócrates: foi coincidência - parece um pouco difícil que tenha sido - o aparecimento das posições dentro do PS e de figuras gradas do PS sobre esse caso, não tinha conhecimento delas?

Não há mudança de estratégia e se houve coincidência foi nas perguntas que surgiram nos diferentes programas onde as diferentes pessoas falaram. Agora, quanto à essência não ouvi nada de novo a ser dito na generalidade dos casos, o que toda a gente disse é o que é óbvio, se algum daqueles factos vier a ser provado relativamente ao Eng. Sócrates, ao Dr. Manuel Pinho ou a qualquer outra pessoa, obviamente que são factos que desonram a democracia. Não deve ser o PS a substituir-se à justiça no julgamento de pessoas, não deve ser o PS a dar como provado ou a travar o debate judiciário sobre as coisas, mas obviamente não quer dizer que não se faça um juízo de valor sobre os factos se vierem a ser provados; que são graves é pacífico e reconhecido por qualquer pessoa.

Então terá sido espontâneo, apareceu por acaso pelas perguntas que foram feitas, foi um azar? Porque apareceu no seguimento de uma posição do líder da oposição.

Eu estava no Canadá nessa semana e, portanto, não pude assistir à sequência dos acontecimentos mas, tanto quanto percebi, a questão fui suscitada num dos programas em que o Dr. Fernando Medina participa, noutro programa em que participa o Dr. Carlos César e também noutro em que João Galamba participa. Se houve alguma consideração foi certamente de quem perguntou e não propriamente de quem respondeu, não houve uma posição oficial da direção do partido para tomar uma decisão de orientar respostas, as pessoas responderam com toda a franqueza sobre essa matéria.

Acha que à luz da ética é possível, num julgamento político, um primeiro-ministro ter admitido, e haver conhecimento do inquérito jurídico que lhe foi feito, que vivia à custa de dinheiros dum amigo, por muito próximo que fosse, que tinha trabalhado para o Estado? Não é possível ter uma atitude política de crítica sobre esta atuação?

O consenso que se estabeleceu no país, e acho que saudável, foi ter-se decidido não fazer um julgamento de qualquer tipo de natureza relativamente a um processo que está em investigação; relativamente a factos que não se conhecem integralmente, não se conhece o contraditório e que qualquer que seja o tipo de comentário - condenatório ou defensivo - tem um efeito de perturbação inevitável naquilo que deve ser a serenidade com que a justiça julga o caso. Talvez por deformação profissional, por ser jurista, por ter sido ministro da Justiça, tenho uma particular exigência em não me pronunciar sobre estes casos; como também não me pronunciei sobre o ministro do anterior Governo que está a ser julgado, porque entendo que devemos separar efetivamente as águas.

Juízos? Claro que todos fazemos juízos entre nós, se gozasse da sua liberdade, certamente já teria escrito um editorial sobre o tema, estando privado dessa liberdade como primeiro-ministro devo manter-me no recato dos meus juízos pessoais sobre a matéria.

E não tem também um juízo sobre o caso Manuel Pinho? Estamos a falar de um ministro que, em funções, recebeu uma espécie de salário extra pago pelo antigo patrão.

Foi sobre esse caso que me pronunciei. Não vou dar por adquiridos factos que não sei se são verdadeiros ou não, sei aquilo que veio na comunicação social, não tenho nada mais a acrescentar àquilo que disse, ou a alterar. Se esses factos vierem a ser provados, constituem obviamente uma desonra para a nossa democracia.

Agora, acho que temos boas razões, ao fim de 44 anos de democracia, de mais de 40 anos de um sistema judiciário que é único nas suas garantias de independência, de autonomia do Ministério Público relativamente à investigação, para deixar a justiça funcionar serenamente, e o funcionamento da justiça na sua serenidade tem duas dimensões que convém nunca esquecer: Uma é a total independência da investigação, outra é a presunção de inocência de cada uma das pessoas. Querer transpor os julgamentos do local próprio que são os tribunais para a praça pública é, no fundo, uma forma moderna, tecnologicamente mais avançada, dos tristes julgamentos populares. Ora, o estado de direito levou muitos séculos a ser construído e merece o devido respeito para ser preservado, mesmo quando isso é desagradável, mesmo quando isso é difícil, mesmo quando envolve amigos nossos, quando envolve camaradas nossos, mas é assim que tem de ser feito.

Disse esta semana que confia plenamente no Ministério Público para o escrutínio judicial das decisões de Manuel Pinho enquanto ministro; e no plano estritamente político, não crê que o primeiro-ministro teria alguma coisa a dizer sobre este caso?

É muito difícil separar o juízo político sobre um conjunto de factos em que eles próprios são objeto do debate judicial. A ocorrência dos factos e a sua prova é algo que decorre do próprio processo judicial; fazer um juízo político, antecipando como verdadeiro aquilo que carece ainda de prova era, em si mesmo, estar a antecipar-me a um julgamento, o que acho que não posso nem devo fazê-lo. É evidente que, entretanto, todos tivemos acesso - por vias ilegais - a partes do interrogatório do Eng. Sócrates, portanto não podemos ignorar coisas que ouvimos, mas ouvimos em que contexto? Ouvimos na totalidade? Não ouvimos na totalidade? Que outros elementos existem?

Eu, enquanto primeiro-ministro, acho que o meu respeito quer pelo Estado de Direito quer pela sua dupla dimensão de liberdade de investigação, de liberdade de julgamento e de presunção de inocência, devo manter o recato, o silêncio sobre a matéria e confiar que as instituições façam o seu trabalho.

Convive bem com a divulgação das imagens dos interrogatórios que são feitos a suspeitos e a testemunhas?

Acho que a violação do segredo de justiça e do recato próprio da investigação criminal, seja de imagens de um interrogatório seja de elementos processuais seja de fugas mais ou menos seletivas, umas vezes por uns outras vezes por outros, não é saudável para a justiça, não é saudável para a democracia e não é saudável para a comunicação social. Porque a comunicação social é, muitas vezes, inocentemente instrumentalizada por estratégias de defesa; quando a defesa divulga certos documentos ou quando a acusação divulga outros não o fazem inocentemente, porque cada uma delas tem uma visão da verdade a construir e a querer provar.

Acho que é uma reflexão que tem preenchido muito as últimas décadas quer dos meios de comunicação social quer dos meios judiciários quer dos meios políticos um pouco por todo o mundo. Creio que a primeira grande experiência de interconexão entre a comunicação social e o sistema judiciário foram as operações Mãos Limpas em Itália, mas sobre isso há teorias diversas. Há aqueles que dizem que sem essa força e essa pressão da comunicação social nunca a justiça teria tido a força suficiente para poder ser realizada, outros consideram que nessa mistura cometeram-se mutas vezes verdadeiras barbaridades no âmbito do estado de Direito. Porventura uns terão razão nuns casos, outros terão razão noutros. Acho que a forma mais prudente é sermos muito conservadores e fazermos a separação das águas, acho que é essencial.

Partilha da ideia do Presidente da República de que os chamados megaprocessos são contraproducentes para a marcha da justiça, sobretudo no combate à corrupção?

Bom, o Presidente da Republica pode-se dar a certas liberdades a que o primeiro-ministro não se deve dar, designadamente para opinar sobre a forma como o Ministério Público deve desenvolver a sua estratégia na organização processual.

Houve outro conselho nessa matéria por parte do Presidente: ele admitia que o Parlamento devia legislar ainda antes que estes casos mediáticos acabassem. Concorda?

Legislar sobre quê?

Prevenção e combate à corrupção; creio que era essa a ideia.

Mas o nosso problema tem sido falta de legislação? Ainda recentemente vi declarações do diretor do DCIAP dizendo que o país não carece de legislação. A última grande reforma que foi feita na legislação sobre o combate à corrupção foi quando eu era ministro da Justiça, em que se fez um conjunto de alterações. A primeira, e mais importante, na definição de que para haver crime de corrupção não era necessário provar a ligação entre o benefício indevido recebido e qualquer tipo de contrapartida; em segundo lugar ficou também esclarecido que o benefício indevido tanto podia ser prestado antes da contrapartida como depois, não era isso que descaracterizava o facto de haver corrupção; em terceiro lugar foi adotado um conjunto de novos instrumentos eficazes de combate à corrupção, desde o levantamento do sigilo bancário à possibilidade da exigência de agentes infiltrados, desde o alargamento dos mecanismos de escuta aos mecanismos de cooperação judiciária internacional. Tudo isso foi feito quando eu era ministro da Justiça. Ao longo destes anos poucos aperfeiçoamentos foram introduzidos, porque se tem entendido que o essencial da lei está assegurado.

Agora, se há iniciativas concretas a apresentar, elas que sejam apresentadas e podem ser debatidas. Mas, ainda recentemente ouvi o Dr. Amadeu Guerra dizer que não falta legislação, portanto o que falta certamente é haver maior proatividade. A prevenção da corrupção é essencial, a corrupção é uma chaga de todos os sistemas públicos e, portanto, exige uma atividade muito firme, porque mina a democracia, mina a lealdade da concorrência e condiciona a liberdade dos cidadãos, por isso tem de ser firmemente combatida seja contra quem for, seja em que momento for e de acordo com as regras próprias do Estado de Direito.

Depreende-se, portanto, que não é grande adepto de duas ideias que parecem estar agora de regresso ao debate público: a criminalização do enriquecimento ilícito e também a delação premiada. São dois temas sobre os quais gostaria de ouvir a sua opinião enquanto jurista, atual primeiro-ministro e ex-ministro da Justiça durante o segundo Governo de António Guterres. Já refletiu sobre estas propostas?

Já. Não sou defensor de nenhuma delas. Sobre a primeira introduzi aliás uma medida muito importante que é a inversão do ónus da prova sobre a origem dos bens, para quem seja condenado por crime de corrupção, tráfico de armas, tráfico de droga, enfim, um conjunto de crimes; uma vez condenado presume-se que todo o seu património tem origem criminal e, portanto, se não for demonstrada a legalidade da origem desse património há uma perda total em benefício do Estado, sendo que logo no início do processo, o Ministério Público pode requerer o arresto ou a penhora da totalidade desses bens para garantia. Isso, como se sabe, na criminalidade económica é mesmo o mecanismo mais eficaz, porque mais eficaz que a pena de prisão é a perda dos benefícios materiais obtidos por via dessa criminalidade. Mas isso é ter a inversão do ónus da prova quanto à origem dos bens após uma condenação em tribunal, agora, substituir aquilo que é a norma do Estado de Direito - a necessidade da prova antes da condenação - pela presunção da culpabilidade em função do património que se tem é uma inversão perigosa dos valores do Estado de Direito.

Convém nunca esquecer, como aliás o senhor Presidente da República ainda recentemente recordou no seu discurso do 25 de abril, que nós nunca podemos dar por adquiridos os valores que julgamos pacíficos e universais. Há 100 anos, quando a Primeira Guerra Mundial acabou, muitos também acreditaram que a paz na Europa era definitiva, e menos de duas décadas depois estávamos de novo numa guerra. Portanto, a liberdade e a democracia nunca são bens que estão devidamente salvaguardados, devemos ser sempre muito prudentes nas aberturas das exceções e dos entorses ao Estado de Direito porque sabemos como começam esses entorses, mas nuca sabemos onde é que terminam. Assim, nunca fui favorável a essas formas, pelo contrário sou favorável a que se assegurem todas as condições para que o Ministério Público, a Polícia Judiciária, as magistraturas judiciais possam investigar e julgar com total independência qualquer tipo de criminalidade. Acho que é, aliás, uma garantia não só da democracia, não só uma garantia para os cidadãos, mas uma garantia da probidade de cada um de nós que está na vida política, porque a melhor forma de os políticos garantirem a preservação do seu prestígio e a confiança dos cidadãos é poderem ter a certeza de que os cidadãos sabem que quem comete crimes é punido e quem não é punido é porque é um homem sério. Porque senão, às tantas, começa a haver esta grande confusão da ideia que somos todos iguais e que há os que já foram condenados e os que só não foram condenados porque não houve prova para eles. Isso não é aceitável nem é saudável para a democracia.

Pode-se então concluir que um eventual pacote de medidas anticorrupção apresentado pelo PSD que inclua este tipo de medidas não contará com o apoio do Partido Socialista?

Esses exemplos no passado não contaram e não há nenhuma razão para alterar essa posição.

Para si já é claro que o mandato da Procuradora Geral da República (PGR) é renovável e a polémica recente, mas forte, que houve sobre essa questão pode, de alguma maneira, condicionar a escolha que será feita em breve?

O processo de escolha assenta numa proposta do Governo e numa nomeação por parte do Presidente da República. Portanto acho que não se deve antecipar qualquer tipo de discussão que fragilize o exercício de funções da atual PGR; quando chegar o devido momento, o Governo falará com certeza com o Presidente da República e acertaremos as posições. É da praxe que os governos não proponham aos Presidentes da República nomes que lhe causem incómodo. É assim relativamente aos chefes militares, foi assim no passado quanto às escolhas de PGRs e seguramente será assim também no futuro.

Voltando à questão da corrupção, agora em relação ao Congresso próximo do PS: Não seria exigível uma posição muito clara do Congresso que saísse para uma resposta que é como que uma exigência dos cidadãos sobre uma questão que lhes chama muito a atenção? Na sua moção ao Congresso, a palavra corrupção não entra nem uma única vez, não é verdade?

Eu creio que ninguém tem dúvidas sobre a condenação geral da cidadania da corrupção. Há uns anos editei um livro sobre o conjunto das minhas intervenções públicas sobre os mais diferentes assuntos, nos domínios em que exercia funções, e tem uma posição muito clara sobre a corrupção. Já tive oportunidade de recordar aqui que o corpo legislativo e as ferramentas essenciais de reforço do combate à corrupção foram criadas quando eu era ministro da Justiça e, até agora, ninguém sentiu ainda necessidade de alterar isso. O PS é o partido que está na origem do desenho deste sistema de justiça e da independência do Ministério Público; foi com o ministro da Justiça Almeida Santos que este modelo foi criado. Muito original, não há nenhum país da Europa, e creio que do mundo, onde o Ministério Público goze de tanta autonomia, e isso foi formatado por um Governo do Partido Socialista. O PS não tem nada a provar para andar a proclamar para o cristão-novo aquilo que sempre fez parte dos valores estruturantes, fundadores e que faz parte do nosso património histórico.

O Governo anunciou esta semana que vai voltar, aliás depois de um sinal vindo do Palácio de Belém, a enviar para promulgação do diploma...

Já enviou. Enviou para a Assembleia da República porque a autorização legislativa ao abrigo da qual tinha sido aprovado tinha entretanto caducado. Na altura foi pena o senhor Presidente da República ter entendido que devia vetar o diploma, agora que ele já disse publicamente que não subsistem as razões que determinaram o veto do diploma, claro que renovámos imediatamente essa iniciativa legislativa, foi aprovada no último Conselho de Ministros de quinta-feira passada.

Estamos a falar do aliviar do sigilo bancário para quem tem contas acima dos 50 000 euros. Não se abre aqui um precedente perigoso?

Vamos lá ver, nós temos de nos entender. [Risos] Se as medidas não são tomadas são perigosas porque não são tomadas, se são tomadas são perigosas porque são tomadas. Nós temos de agir aqui com equilíbrio, com razoabilidade e com bom senso. O que está em causa é poder haver mais um instrumento de deteção de circulação de dinheiro não declarado. Se o dinheiro for declarado ninguém tem nada a temer e, chamo a atenção, é um sigilo bancário que é levantado, mas que fica coberto pelo sigilo fiscal. Diria até que são dois sigilos bastante mais salvaguardados do que habitualmente é o segredo de justiça.

Não tenho dúvidas sobre quanto, do ponto de vista da teoria, há essa preocupação clara sobre a corrupção, mas também é verdade que depois aparecem os diversos casos, alguns até tão pequenos que poderiam ser remediados só com um pouco de bom senso. Estou-me a lembrar que daqui a pouco mais de um mês vai acontecer o mundial de futebol na Rússia; em princípio não vai haver nenhum governante que vá viajar à custa de um convite de uma empresa. No Congresso não devia ser alertado também, por causa desta preocupação dos cidadãos, que nenhum eleito do PS seja apanhado nesta pequena malha?

Acho que isso são questões de bom senso. Na altura entendemos precisamente que era necessário desonerar cada uma das pessoas do seu próprio juízo sobre o que é que é razoável e não é razoável e definiu-se na altura um código de conduta que define qual é o limite dos presentes que entendemos fazerem parte das normas habituais da cortesia e das normas sociais. Não acho que seja verdadeiramente uma questão que justifique qualquer outra tomada de posição.

A minha moção tem uma lógica própria que é a de estando nós a um ano e meio das próximas eleições, havendo uma convenção nacional sobre a Europa em janeiro para preparar as eleições europeias, havendo uma convenção nacional em julho do próximo ano para aprovar o programa de governo, agora decidimos fazer algo que é extraordinariamente importante em política e que raramente temos oportunidade de fazer, que é em vez de estarmos a discutir as questões do dia, podermos olhar para os grandes desafios estratégicos que se colocam ao país mo médio e no longo prazo. Dentro desses identifiquei quatro que considero fundamentais: um que tem que ver com as alterações climáticas, o segundo é o desafio demográfico, o terceiro é o desafio da sociedade digital e o quarto, o desafio das desigualdades.

Estes, nas suas múltiplas dimensões, porque as alterações climáticas implicam olhar de uma forma diversa para a nossa relação com a energia, com os recursos naturais, para o paradigma da mobilidade. No desafio demográfico temos de olhar para como queremos melhores condições, em particular para as novas gerações poderem aumentar o índice de natalidade, como é que podemos ter uma política mais inteligente de imigração, que ajude a cobrir o défice demográfico que temos, o impacto que a demografia vai ter no Serviço Nacional de Saúde, na sustentabilidade da Segurança Social. Na sociedade digital há questões que vão da pluralidade dos órgãos de comunicação social e a garantia da sua independência ao que ela ameaça e, por outro lado dinamiza, a vida democrática, mas também o enorme desafio que constitui para o mundo do trabalho, para a organização das empresas, para a duração do tempo de trabalho ao longo da nossa vida, como é que vamos ter uma formação contínua ao longo da vida para adaptação aos novos desafios, como é que investimos na inovação, como é que podemos aproveitar esta parte da revolução industrial que é a primeira para a qual Portugal entra sem ser em posição de desvantagem, seja por carência de recursos naturais seja por distância seja por problemas energéticos. E, finalmente, o grande desafio das desigualdades que se coloca ainda hoje em múltiplas dimensões, na dimensão social, do ponto de vista das desigualdades económicas, no desenvolvimento do território, as desigualdades que têm que ver com uma sociedade que precisa de mais imigração, que tem que respeitar ainda mais a igualdade dessa diferença, e interrogarmo-nos sobre como é que é possível 44 anos depois do 25 de abril que o vencimento das mulheres continue a ser em média 17,5% inferior ao dos homens.

Há aqui uma multiplicidade de questões e que são quatro grandes desafios estratégicos e eu acho que temos agora a oportunidade de, com serenidade e a tempo, poder influenciar quer o programa para as eleições europeias quer o programa para as eleições legislativas e refletir sobre eles. É essa a lógica da moção e os temas que são tratados são estes e não outros; se forem ver também não deve ter lá grandes referências sobre o défice orçamental porque não está na lógica dessa moção, está seguramente en passant na referência sobre o balanço da ação governativa, mas não está como um dos grandes desafios que se colocam hoje ao país porque, felizmente, já libertámos o país dessa questão como questão central, como era há dois anos.

Vários analistas olharam para aquelas quarenta e poucas páginas de texto e detetaram ali alguns sinais de uma política de esquerda. Não acha...

Eu acho normal [risos], seria estranho que não fosse assim.

Mas não acha que há uma contradição com aquela que tem sido a prática do executivo, é que na dúvida a prioridade tem sido outra, tem sido sempre mais a consolidação das contas do Estado e a projeção de uma imagem de rigor perante as instituições externas, não vê aí uma contradição ou é já um piscar de olho aos seus parceiros?

Acho que há várias questões nessa pergunta. Em primeiro lugar, eu acho que boas contas públicas não é uma opção de esquerda ou de direita, é uma opção de boa governação, não conheço ninguém de esquerda que defenda más contas públicas. Se formos ver aos municípios geridos pelo PCP, em regra, são daqueles que têm as suas finanças municipais mais equilibradas e não é por isso que o PCP deixa de ser de esquerda. Em segundo lugar, o desafio a que nos propusemos desde o início foi compatibilizar e demonstrar que era possível virar a página da austeridade e, ao mesmo tempo, ter melhores resultados na consolidação orçamental. E demonstrámo-lo, cumprimos todos os compromissos que tínhamos assumido para romper com a austeridade: devolvemos salários e pensões que tinham sido cortados, devolvemos as prestações sociais que tinham sido cortadas, baixámos a carga fiscal sobre o trabalho, criámos novas prestações sociais como a prestação social para a inclusão. Vamos lançar agora uma nova geração de políticas de habitação e, ao mesmo tempo, mantivemos uma gestão orçamental prudente e rigorosa que nos permitiu ter o défice mais baixo da nossa democracia.

Com isto respondemos, aliás, a um problema que angustiava muito parte da esquerda aqui há uns anos, que era o problema da dívida e o garrote da dívida. Com esta gestão orçamental conseguimos, no ano passado, ter uma primeira redução significativa da dívida e, com isto, libertar recursos para novos investimentos. Se formos comparar a previsão que tínhamos de pagamento de juros em 2018 no Orçamento de Estado que apresentámos em outubro do ano passado e a previsão de juros que temos neste momento, agora que apresentámos o Programa de Estabilidade, verificamos que prevemos já uma poupança de 74 milhões de euros de juros e esses 74 milhões de euros vão ser integralmente reinvestidos no Serviço Nacional de Saúde, na escola pública e nos transportes coletivos. Isto significa que se tivermos boas finanças públicas, formos reduzindo a dívida, formos diminuindo o peso dos juros que, de facto, têm um peso enorme, criamos melhores condições para fazer algo que é absolutamente prioritário: termos mais e melhores serviços públicos para servir melhor os cidadãos.

Os seus parceiros não acham que seja suficiente, acham que a tal folga existente devia ser usada, querem mais e melhor redistribuição.

Se repararem, há um discurso distinto do PCP e do Bloco de Esquerda, o PCP diz uma coisa, aliás muito razoável, que é: "Para nós é-nos indiferente se o défice é 0,7 ou se é 0,9 ou se é 1,1, o que é essencial é que sejam cumpridos os compromissos assumidos", e, até agora, ainda ninguém nos apontou um único compromisso que tenha sido assumido e que não tenha sido cumprido. Se nós hoje podemos prever um défice mais baixo para 2018 do que aquele que prevíamos em outubro é pelo facto de em 2017 termos tido um resultado melhor do que aquele que prevíamos ter e, portanto, o ponto de partida ter sido melhor também. Se imaginarmos que a viagem é de Lisboa ao Porto prevemos que vamos levar 2h30m pelo menos a chegar ao Porto, mas se em vez de partirmos de Lisboa partirmos de Coimbra já só vamos levar uma hora a chegar ao Porto.

Ora, o facto de este ano termos partido de um défice menor, também nos permite que, este ano, o esforço que é necessário fazer seja menor do que o que tínhamos previsto. O que nós não podemos confundir é o melhor ponto de partida com maior folga, porque o défice significa o quê? É a medida do dinheiro que nos falta para termos um Orçamento equilibrado. Nós não temos 800 milhões de euros a mais, temos 800 milhões de euros a menos. Aquilo que tem sido o sucesso desta política - não é só o sucesso do Governo, é também o sucesso do PCP, também é o sucesso do Bloco de Esquerda, também é o sucesso do Partido Ecologista Os Verdes - é, em primeiro lugar ter acabado com a ideia de que a esquerda não é boa gestora das finanças públicas, hoje todos sabemos que a esquerda é boa gestora das finanças públicas se fizer as boas políticas; em segundo lugar, temos demonstrado à direita que para termos melhores resultados orçamentais não é preciso fazer o que eles fizeram, pelo contrário, foi revertendo o que tinha feito Vítor Gaspar e Maria Luis Albuquerque que nós conseguimos os resultados que eles sonharam ter, mas que falharam completamente. Ou seja, eles ganharam-nos na austeridade, mas perderam na consolidação orçamental, nós destruímos a austeridade e ganhámos na consolidação orçamental.

Isto são duas vitórias políticas de grande alcance para o futuro e que garante aos portugueses e, em particular, àqueles que há dois anos tiveram medo de votar no Partido Socialista, porque tinham medo de que votando no PS iríamos voltar a desequilibrar as finanças públicas, aqueles que se assustaram com a formação desta maioria e que hoje sabem que podem estar tranquilos, que como PS no Governo e ​​​​​​​com esta maioria somos capazes de ter boas finanças públicas, um défice controlado, uma dívida a descer, uma taxa de juro a melhorar, a credibilidade internacional restabelecida e, ao mesmo tempo, a reposição de rendimentos para as famílias, maior investimento nos nossos serviços públicos, melhor qualidade no investimento que é realizado. Este é um conjunto de garantias muito importante para a credibilidade da esquerda e para a sua capacidade de poder governar.

E partilha esse sucesso com os seus parceiros que o apoiam no Parlamento, não é algo que seja exclusivo da autoria do ministro das Finanças?

Não, aliás, às vezes tenho pena de ver os meus parceiros com alguma vergonha de partilharem este sucesso, mas acho que se devem descomplexar porque estes resultados não foram alcançados à custa de nenhuma medida que eles tenham proposto ou à custa de qualquer compromisso que tenhamos assumido. Não os vimos até agora a apontar uma única medida que tivéssemos deixado de fazer. Podemos fazer mais? Claro, e nós também dizemos o mesmo, estamos aqui para continuar a fazer mais, vamos continuar a fazer mais neste próximo ano e meio e, espero eu, nos anos seguintes também.

Na sua moção fala em reforço do Estado Social como arma de combate às desigualdades, afirma mesmo que o PS deve comprometer-se com uma sociedade cada vez mais igualitarista. É por aqui que vai tentar tranquilizar os parceiros do Governo ao longo do debate do Orçamento de Estado para o próximo ano?

Esta moção é a moção que eu apresento ao PS para o PS apresentar aos portugueses. Através da moção não estou a dialogar com os nossos parceiros, eles têm os partidos deles, os congressos deles, as moções deles, nós temos o nosso e temos as nossas posições. Uma coisa de que hoje ninguém tem dúvidas na sociedade portuguesa é de que fomos capazes de preservar a identidade própria de cada um, mas ao mesmo tempo, pela primeira vez, somos capazes de fazer em conjunto o que combinamos fazer em conjunto. Esta moção é a moção que eu apresento aos socialistas para que os socialistas a apresentem ao país. O debate com os nossos parceiros é um debate que se continuará a desenrolar da forma como temos feito ao longo destes dois anos e meio.

O Presidente da República dramatizou numa entrevista desta semana a hipótese de não haver consenso à volta do Orçamento de Estado para o próximo ano. Como é que viu essas palavras?

Eu estou confiante em que termos seguramente este Orçamento como tivemos o de 2016, o de 2017 e o de 2018. Tenho aliás dito que depois de no primeiro termos aprendido a trabalhar em conjunto, quer em 2017 quer em 2018 já foi mais fácil e em 2019 já temos muita experiência acumulada, mais informação, portanto vejo com otimismo - espero que não "irritante" - a possibilidade de fecharmos este Orçamento de 2019. Acho que é essencial, porque esta solução de governo tem uma história, este Governo existe porque existe uma maioria na Assembleia que o viabilizou, e essa maioria traduz-se designadamente na capacidade de fazermos coisas em concreto como instrumentos essenciais da governação como o Orçamento. O chumbo do Orçamento tinha como consequência inevitável a queda do Governo.

Consequência inevitável, disse?

Consequência inevitável, sejamos claros. Todos sabemos como é que este Governo foi constituído, ele foi constituído porque foi possível construir na Assembleia da República uma solução parlamentar maioritária, que criou condições para viabilizar um programa de governo e que se atualiza anualmente através da aprovação do Orçamento. Não tenho nenhuma razão para pensar que em 2019 não vamos ter o Orçamento aprovado quando temos o de 2018, 2017, 2016. Claro que todo o processo de aprovação do Orçamento implica uma negociação em que cada um afirma as suas posições; temo-lo feito sempre Cuma base muito leal, muito construtiva, com um esforço de todos para aproximar posições, para identificar a capacidade de termos um Orçamento onde todos nos possamos rever, mas é evidente que no dia em que esta maioria não for capaz de produzir um Orçamento, esse é o dia em que este Governo se esgotou e, inevitavelmente, isso implica a queda do Governo.

Não está portanto disponível para levar o país para duodécimos, tentando uma segunda hipótese de negociação, isso não faz sentido para si?

Não, o que faz sentido obviamente é negociar o Orçamento como sempre temos feito. É isso que irei fazer, como sempre fizemos, com todo o espírito construtivo. Não me lembro de nenhum caso onde qualquer um dos partidos tenha sido irredutível e não tenha agido positivamente para ultrapassar dificuldades que aqui e ali foram surgindo; não há-de ser seguramente em 2019 que nós iremos frustrar a esmagadora maioria dos portugueses, que está satisfeita com o Governo, satisfeita com esta solução política, satisfeita com os resultados sociais e económicos desta governação e que aquilo que deseja é mais e quem deseja mais o que pode desejar é que possamos continuar. Como costuma dizer o PCP, enquanto houver caminho para andar vamos caminhando, e é isso que vamos fazer.

Voltando à moção que vai ao Congresso da Batalha - é um tabu que certamente irá alimentar até ao último minuto possível -, trata-se da questão de se o PS vai ou não pedir uma maioria absoluta nas legislativas de 2019, na moção limita-se a dizer que da capacidade e da força do PS dependerá a concretização desse desígnio. Quer ajudar-nos para uma leitura desta frase que, convenhamos, é um pouco ambígua?

Vamos lá a ver, são duas coisas distintas. Eu acho que depende da força do PS a possibilidade da existência desta solução política, um PS fraco não permite uma solução política como aquela que temos atualmente, porque é este equilíbrio de forças que tem permitido que possamos equilibrar os diferentes objetivos que temos de prosseguir: eliminar a austeridade e consolidar as finanças públicas, assegurar o crescimento dos rendimentos e a produtividade da economia, atrair o investimento e desenvolver a proteção dos direitos dos trabalhadores, diminuir a dívida e investir nos serviços públicos. Este equilíbrio exige um Partido Socialista forte, porque só um PS forte consegue estabilizar e unir estas diferentes punções que existem na sociedade portuguesa, sobretudo numa fase que é sempre paradoxalmente desafiante que é a de quanto melhor as coisas correm maior é a exigência relativamente ao retorno social da melhoria da situação. Isto exige obviamente um PS forte.

Quanto aos resultados eleitorais, eu já ando na vida política há muitos anos, já perdi eleições, já ganhei eleições e há uma coisa que eu sei: quem decide os resultados eleitorais são os eleitores, não é o que os políticos pedem, porque se perguntarem a qualquer político, o que ele pede seguramente é a vitória eleitoral e com maioria absoluta, mas não é por isso que a tem ou que a deixa de ter. Cada um de nós tem o resultado que os eleitores entendem que merece ter, portanto eu, por mim, confio-me ao juízo sábio dos eleitores para governar em função daquilo que forem os resultados. Espero obviamente que sejam os melhores possíveis.

Eu ganhei três vezes as eleições para a Câmara Municipal de Lisboa. Numa eleição estava em ultraminoria na Câmara e tinha pela frente uma maioria absoluta do PSD na Assembleia Municipal. Na segunda eleição passei a ter maioria na Câmara, mas continuei em minoria na Assembleia Municipal. Finalmente, na terceira, tinha maioria na Câmara e na Assembleia Municipal. Há uma coisa que eu digo: a nossa política não se altera em função dos resultados eleitorais. Muitas vezes perguntam-me: Se tivesse maioria absoluta prescindia do diálogo com o PCP, o BE e o PEV? Não, não prescindia. Acho que esta fórmula de solução política tem virtualidades que não são a mera aritmética parlamentar. Tem virtualidades na dinâmica social, na dinâmica da vida democrática, na forma como o conjunto do país hoje olha para a Europa; se formos ver o eurobarómetro, nós recuperámos em dois anos, muito significativamente, a confiança e o apreço dos portugueses pela Europa, e isso tem que ver também com esta fórmula política que foi encontrada, porque foi possível demonstrar que a Europa não era só aquela cara sinistra do senhor Schäuble associado ao Vítor Gaspar, era, pode e tem de ser outra coisa. Portanto, o contributo que esta solução política deu para enriquecer e dar vida à nossa democracia, não o devemos desvalorizar e é seguramente um dos grandes antídotos da emergência em Portugal de radicalismos e de populismos.

Nas eleições legislativas precedentes fez-nos saber que se sabe adaptar aos resultados, portanto não vai pôr condições ao eleitorado para governar?

Eu acho que um político tem de ter a humildade de trabalhar com as condições que os cidadãos lhe dão para trabalhar. Acham que é por eu pedir maioria absoluta que alguém me vai dar maioria absoluta se eu não a merecer? Acham que vou deixar de ter maioria absoluta se as pessoas entenderem que eu a mereço? Há coisas que não se pedem ou se merecem ou não.

E acha que merece?

Eu sei qual será o sentido do meu voto, porque deve ser dos poucos votos que não é secreto [risos], mas confio-me tranquilamente àquilo que será o juízo que o eleitorado fará no momento próprio e à decisão que tomar. Eu governarei ou não governarei consoante as condições que o eleitorado criar.

Senhor primeiro-ministro, já fez as pazes com a palavra "geringonça" ou ainda não?

Sempre, aliás, sempre a achei uma palavra simpática. Acho que foi a maldade que pior saiu na vida ao Dr. Vasco Pulido Valente.

Nos dias a seguir às eleições, se não tiver conseguido assegurar essa maioria absoluta, vê-se a negociar com o mesmo empenho com a esquerda e com o centro, ou seja, vê-se a negociar da mesma forma com o PCP, Bloco e Verdes e com o PSD se tiver de chegar a esse ponto?

Eu tenho, há muitos anos, uma posição - que aliás é idêntica à do líder do PSD e, curiosamente, também à do Presidente da República - de que um sistema partidário como aquele que nós temos em Portugal, salvo em situações excecionais, um Governo que junte o PS e o PSD não é uma solução saudável para a nossa vida democrática porque priva os portugueses de poderem contar com alternativas, que naturalmente terão sempre como pivô um ou outro desses dois partidos. Portanto, salvo em circunstâncias absolutamente extraordinárias, que creio não estão no horizonte de ninguém, esse cenário não é desejável; o cenário desejável é este, além do mais, e eu não gosto de importar para a política o vocabulário do futebol, em equipa ganhadora não se mexe. Não vejo nenhuma razão, neste momento, para alterar aquilo que é uma fórmula que tem provado bem, tem assegurado estabilidade, tem contribuído para o crescimento económico, para a consolidação das finanças públicas, para a recuperação da credibilidade do país, onde ainda temos muito a fazer e onde podemos continuar a caminhar e a avançar no mesmo sentido.

Leia a segunda parte da entrevista:

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