Só meia dúzia de crianças, às vezes menos ainda, recebem a cada ano o nome de Viriato em Portugal, e talvez até mais para homenagear o pai ou um avô do que o mítico guerreiro que - aprendemos nos livros da escola primária - liderou a resistência dos lusitanos contra os invasores romanos no século II a.C. Mas crescemos a acreditar que essa figura de há mais de 2000 anos foi um herói português, ou, pelo menos, um herói do povo que foi o antepassado dos portugueses. Mas na verdade pouco se sabe de Viriato e os espanhóis também o reivindicam e ergueram-lhe estátuas semelhantes à que existe em Viseu.."Há um personagem histórico chamado Viriato, que foi chefe lusitano no século II a.C. Historicamente, dele pouco se sabe, além de que foi chefe de um "exército tribal", bem-sucedido nos combates contra Roma, durante cerca de uma década - mas as guerras de lusitanos e romanos não começaram nem terminaram com Viriato", explica o professor Carlos Fabião, uma autoridade em história da presença romana na Península Ibérica. Que acrescenta: "Há um outro Viriato, de construção mítica. O autor da construção foi o sírio Posidónio, um autor estoico, que construiu alguns perfis de "bárbaros virtuosos" para contrapor ao que julgava ser a corrupção dos civilizados seus contemporâneos. Todas as notas sobre o carácter e o comportamento de Viriato devem-se a este autor: o chefe carismático e justo, com despojamento dos bens materiais. Os nacionalismos de vários tons e cores, tanto de Portugal como de Espanha, apropriaram-se desta figura (e sobretudo destas supostas virtudes) para construir um antepassado longínquo, quer de espanhóis quer de portugueses: afinal, quem não aprecia o patriotismo, a defesa do seu território, a justiça e o despojamento de bens materiais dos chefes?" Viriato, que é reivindicado como filho das Beiras, também do Alentejo e da Extremadura espanhola e até de Leão, e tem estátuas e cidades do lado de cá e de lá da fronteira, tem tudo para se manter um mistério e permitir assim múltiplas reivindicações..Carlos Fabião, autor, junto com Amílcar Guerra, do ensaio Viriato: Genealogia de Um Mito, insiste que realmente se sabe muito pouco da figura. "Terá sido chefe de um exército tribal que combateu com êxito os exércitos de Roma, recorrendo a táticas que hoje classificaríamos como de guerrilha. O que a tradição analística romana dizia de Viriato era algo tão lacónico como: primeiro foi pastor e salteador, depois chefe militar, combatendo pelas táticas de ataque e fuga, e terá sido morto pelos seus companheiros. Pode dizer-se que isto é quase tudo o que de exato se conhece", sublinha o professor da Universidade de Lisboa, que está agora envolvido nas escavações de Ammaia, no Alto Alentejo, umas ruínas romanas que prometem muitas descobertas. Sobre aquilo que fez Viriato famoso, ou seja, a resistência aos conquistadores romanos, Carlos Fabião faz também questão de integrar o mito na realidade: "As legiões romanas, como exército regular, experimentaram frequentemente dificuldades no confronto com os chamados "exércitos tribais", na Península Ibérica, mas não só, que eram no fundo bandos mais ou menos numerosos de constituição fluida e chefias informais. Os exércitos regulares da época helenística, nomeadamente os dos reinos saídos do desmembramento do Império de Alexandre, tinham uma organização regular, chefias bem definidas, territórios adstritos e combatiam abertamente em campo de batalha..Quando vencidos e capturados (ou não) os seus chefes, os romanos passavam a controlar espaços, territórios e seus recursos. Com os chamados "exércitos tribais" nada disso se verificava. As chefias eram efémeras, os territórios fluidos. Um general romano teria comparado a guerra com os "exércitos tribais" a um fogo na planície: apaga-se aqui, para logo de reacender em outro lugar. Na realidade, temos notícias de conflitos entre romanos e lusitanos durante quase dois séculos. Mas as causas nada tinham que ver com defesa de uma suposta "nação", ou território nacional, mas antes, muito provavelmente, com questões de pressão demográfica sobre os territórios e os recursos disponíveis. Os conflitos são quase sempre apaziguados pela concessão de terras para instalação. Com a reorganização territorial realizada por Roma na Península Ibérica, os conflitos cessaram.".A diretora do Museu Nacional de Arte Romana em Mérida, a antiga capital da Lusitânia romana, também defende o carácter luso-espanhol do guerreiro Viriato: "Em toda a zona fronteiriça, da Raia, entre Espanha e Portugal, em toda a área da antiga Lusitânia, Viriato é um personagem mítico. Em Portugal é como um ancestral local, autóctone, e também na parte espanhola Viriato tem monumentos e é também como um símbolo desse personagem autóctone que defendeu o território." Trinidad Nogales não deixa ainda de salientar que em torno da figura "há uma parte de mito e há uma parte de realidade", nem sempre fácil de separar.