O céu pode esperar

Comédia leve à procura de emoções terrenas, <em>A Felicidade das Pequenas Coisas</em>, de Daniele Luchetti, é uma singela vacina de esperança sem efeitos secundários. Em estreia nas salas.
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Há uma certa simpatia pelo regresso ao grande ecrã de um tema clássico de Hollywood: as relações burocráticas entre o céu e a terra, e o modo como estas determinam quem tem direito a uma segunda oportunidade. A primeira diferença, porém, é que estamos a falar de uma comédia italiana e, excluindo a premissa narrativa, pouco mais se parece com os "clássicos". A saber, A Felicidade das Pequenas Coisas, de Daniele Luchetti, quer mostrar o que se esconde nas aparentes insignificâncias da nossa existência, mas não está habilitado para fazê-las crescer aos olhos do espectador. São apenas átomos do contentamento de alguém.

O protagonista, Paolo, num jeito que recorda remotamente Michele Apicella (o alter ego de Nanni Moretti), procura captar-nos a atenção pelas suas peculiares questões à volta das coisas mais absurdas do quotidiano, e por hábitos pouco dados ao bom-senso. Por exemplo, gosta de passar o sinal vermelho num determinado cruzamento, mesmo naquela fração de segundo em que a cor muda e ninguém se mexe em qualquer direção. Um dia esse teste à sorte não corre bem e a sua scooter é colhida por um camião, iniciando, pela via da tragédia, a revisitação mais ou menos airosa e melancólica de vários momentos da sua ainda não muito comprida (nem cumprida) vida.

Isto só é possível porque, chegado a uma espécie de Loja do Cidadão celeste, um funcionário dá com um erro de contabilidade engraçadíssimo - e esta, faça-se justiça, é de facto a melhor sequência do filme - que proporciona o regresso de Paolo à terra. Ou melhor, um regresso anedótico, já que se trata de hora e meia, com um conselho prático: "Não queira fazer agora o que não fez durante a vida toda."

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O intérprete de Paolo, Pierfrancesco Diliberto, mais conhecido por Pif, é um rosto popular da televisão italiana, e será nessa assunção de carisma que assenta A Felicidade das Pequenas Coisas. Ele conduz-nos por algumas memórias, umas mais idiotas do que outras, e vai montando os gestos de uma consciência do passado recente, entre traições à mulher, preguiça disfarçada e uma manifesta falta de aptidão para lidar com a filha mais velha. Mas daqui não resulta nada de particularmente luminoso, ou matéria para reflexão, ainda que se perceba a tentativa de retrato humano invulgar e caleidoscópico que está na base do argumento adaptado de um romance de Francesco Piccolo.

Dito de outra maneira, a variação que Daniele Luchetti apresenta das visitas cinematográficas ao departamento do Paraíso não tem um terço das ambições de filmes como O Céu Pode Esperar (1978), de Warren Beaty e Buck Henry, ou o homónimo deste assinado por Ernst Lubitsch (1943). E se acrescentarmos às referências uma obra-prima como Caso de Vida ou Morte (1946), de Michael Powell e Emeric Pressburger, ficamos a ver A Felicidade das Pequenas Coisas como um pontinho existencial ao fundo do túnel. Um filme que não sabe aproveitar a idiossincrasia que enceta porque está demasiado focado na graça pouco subtil dos "pequenos nadas". Deixa aquela sensação de leveza momentânea e uma vontade danada de rever o clássico da dupla The Archers. Bem, isso já não é mau.

** Com interesse

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