O caso (nada) elementar de Benedict Cumberbatch  

É um dos atores britânicos mais solicitados dos últimos anos e um rosto de muitas camadas. A "febre" Benedict Cumberbatch começou há mais de uma década, com <em>Sherlock</em>, a série que chega agora ao <em>streaming </em>da HBO Max - todas as temporadas ficam disponíveis a partir desta quinta-feira.
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"O que me interessa é a qualidade e a variedade do trabalho. Encaro-o como um jogo de longa duração. Quero estar a trabalhar daqui a 40 anos, virar-me para um ator no set e contar-lhe histórias de como foi contracenar com a Judi Dench ou o Michael Gambon. Por isso, a conversa do "homem do momento" só me faz sorrir com ironia - é a mesma treta do "mais sexy". Tudo uma questão de projeção." As palavras de Benedict Cumberbatch ao The Telegraph em 2014, quando foi um dos favoritos ao Óscar de melhor ator (por O Jogo da Imitação), ainda dizem muito sobre este ilustre inglês que se move entre o grande e o pequeno ecrã, o cinema de autor e o universo dos super-heróis, sem nunca vender a alma ao diabo nessas mudanças de registo. Aos 46 anos, imparável e com 20 de carreira, continua a ser uma figura "do momento", e até motivo de um livro: a australiana Tabitha Carvan lançou este ano This is Not a Book About Benedict Cumberbatch, depois de se ter apaixonado pelo ator na série Sherlock. Como diz o título, este não é um livro sobre Cumberbatch, mas sobre a paixão adolescente que ele despertou numa mulher de meia-idade, mãe de duas crianças, espantada com o renovar de um certo tipo de desejo algures esquecido no quarto repleto de posters dos ídolos da fase teen da vida.

Não é qualquer ator que produz semelhante efeito. Depois da dita nomeação para o Óscar, a sua primeira, pelo papel do matemático Alan Turing em O Jogo da Imitação, de Morten Tyldum, alcançou recentemente uma segunda nomeação, na pele de um cowboy perverso mas interiormente ferido, em O Poder do Cão, de Jane Campion. Mais uma vez, era um dos favoritos - faltou a justiça poética.

Só no último ano, para além de The Power of the Dog, passou pelo palco numa minissérie de produções teatrais (Great British Theatre), entrou em O Mauritano, de Kevin Macdonald, retomou a sua personagem da Marvel, Doctor Strange, no gigantesco sucesso Homem-Aranha: Sem Volta a Casa, e há poucos meses protagonizou o segundo filme desse super-herói, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, assinado por Sam Raimi. Pelo meio, talvez tenha passado despercebido o frenético e adorável A Vida Extraordinária de Louis Wain, de Will Sharpe, também estreado entre nós, biopic do artista britânico que na Inglaterra vitoriana ficou conhecido pelos seus desenhos de gatos com comportamentos humanos. Uma mente criativa e turbulenta (a medicina de hoje acredita que se tratava de um caso de esquizofrenia) que Cumberbatch interpreta com a máxima amplitude emocional, tocando as notas profundas da sua dor, assim como a doçura de um génio "elétrico". É um retrato francamente comovente e idiossincrático que pode ser descoberto ou revisitado esta sexta e domingo, no TVCine Top.

Louis Wain e, claro, Alan Turing, são exemplos perfeitos de personagens verídicas que Benedict Cumberbatch assumiu até ao mais ínfimo detalhe. Estamos a falar de alguém que não salta a etapa do estudo histórico dessas personagens - bem pelo contrário, mergulha na literatura disponível, como se percebe por qualquer entrevista do ator - e que procura compreender a filigrana da sua psicologia. É, de facto, quase trabalho de ourives. Não admira que já tenha sido também, na televisão, Vincent Van Gogh e Stephen Hawking, e no cinema, o fundador do WikiLeaks, Julian Assange (O Quinto Poder), e Greville Wynne, um empresário britânico, homem comum, recrutado em 1960 pelo MI6 (O Espião Inglês).

A versatilidade de Cumberbatch podia ser suficiente para o definir como um dos melhores da sua geração, mas é a inteligência palpável da postura e o refinamento das suas abordagens performativas que têm marcado o todo de um percurso dinâmico. Num futuro próximo, será o protagonista de uma das duas novas produções de Wes Anderson, The Wonderful Story of Henry Sugar, que adapta histórias de Roald Dahl, estando neste momento a filmar a minissérie The 39 Steps, a partir do romance homónimo de John Buchan que Hitchcock adaptou em 1935.

Olhos azuis muito claros, rosto pálido e anguloso, de uma "formalidade de gelo", como escreve David Thomson no seu dicionário biográfico do cinema (que o aponta, sem hesitar, como o ator maior da sua geração), Benedict Cumberbatch tem sabido manter uma elegância, dentro e fora da tela, pouco comum em tempos de redes sociais. Desde logo porque o próprio as evita... Foi justamente para fugir ao seu burburinho que no já referido ano da graça de 2014 anunciou o noivado com a encenadora Sophie Hunter na secção de classificados do jornal The Times. Assim mesmo: tradicional e antiquado.

Filho único dos atores Timothy Carlton e Wanda Ventham, estudou em colégios privados e, antes de se formar em representação pela Universidade de Manchester, seguido do mestrado pela London Academy of Music and Dramatic Art, tirou um ano sabático e mudou-se para a Índia onde passou cinco meses a dar aulas de inglês num mosteiro tibetano. Certamente uma experiência refletida na autoconfiança de um jovem que começou nos teatros londrinos a interpretar Shakespeare, Ibsen e Ionesco, chegando à televisão e ao cinema com uma bagagem mais do que interessante e um talento pronto a ser esculpido pela diversidade de projetos.

Sendo um protagonista nato, não recusa papéis secundários e não gosta que lhe ponham a etiqueta de um tipo de personagem. Seja como for, é impossível não o associar a um molde preciso. O perfil que nos ocorre quando pensamos em Cumberbatch é o de alguém altamente inteligente e/ou dotado de qualidades artísticas. Tal como Sherlock Holmes.

Sherlock (2010-2017), a série que ficará disponível na HBO Max esta quinta-feira, foi, por sinal, o início de uma rota de ascensão. É este o momento que assinala o antes e depois na carreira do ator londrino, desde o primeiríssimo episódio, inevitavelmente conotado com uma histeria coletiva autodenominada "cumberbitches": as fãs de Cumberbatch.

Fenómenos à parte, não há dúvidas de que Benedict encarna a personagem mítica de Arthur Conan Doyle como nenhum outro ator o conseguiu nos últimos anos: não vale a pena perder muito tempo com Robert Downey Jr., o rosto da versão dos filmes de Guy Ritchie, que é mais uma brincadeira pop do que outra coisa, e mesmo o Sherlock de Henry Cavill, em Enola Holmes, mal se dá por ele (em parte, por não ser o protagonista). Há também Jonny Lee Miller na série Elementary, e um distinto Ian McKellen a dar vida à velhice assombrada do detetive, em Mr. Holmes. Na linhagem de virtude dos "sagrados" Jeremy Brett e Basil Rathbone, Cumberbatch encontrou o tom do seu Sherlock a meio caminho entre a arrogância prática e um irresistível instinto de diversão à volta da morte. Ou como disse o ator ao The Guardian, "os seus métodos são definitivamente diabólicos, mas no fundo ele é bom". Trata-se, aliás, da conclusão a que chega o seu arqui-inimigo Moriarty, quando diz que ele está "do lado dos anjos".

Criada por Steven Moffat e Mark Gatiss (que interpreta o irmão Mycroft Holmes), a série da BBC foi buscar a sua principal inspiração ao filme A Vida Íntima de Sherlock Holmes (1970), de Billy Wilder, uma refinada crónica da relação entre o detetive e John Watson, a partir da vivência na mais famosa morada da literatura: 221b Baker Street. A verdade é que a dupla de criadores conseguiu alicerçar os longos episódios na história atribulada da amizade de Sherlock e Watson (aqui, Martin Freeman), sem descurar o fascínio que é assistir ao próprio exibicionismo de um mestre da dedução, sobretudo perante a perplexidade renovada desse amigo e do inspetor Lestrade. Não sabemos tudo o que vai naquela cabeça, mas quando, para resolver um caso, ele nos dá acesso às ligações feitas pela sua massa cinzenta é um festim de ciência e brilhantismo.

Culpado de "adorar ser Sherlock Holmes", o modelo contemporâneo de Cumberbatch não deixa de conferir um garbo antigo à personagem e remeter para uma certa mitologia, seja com o violino, seja com o chapéu (de vez em quando). De resto, ele tem uma forma de ajeitar a gola do casaco que combina com a excitação do seu intelecto, por contraste com o romantismo discreto e frustrado de Watson. Um contraste que o crescimento da série, ao longo das suas quatro temporadas (e casos), vai tornando menos exato. No fim de contas, nem Watson é apenas o assistente dedicado que escreve um blogue sobre as aventuras de Sherlock, numa espécie de dependência da adrenalina do perigo, nem o detetive é uma pura máquina de dedução. Há um toque humano, inclusive sentimental, que vai deixando à vista a fragilidade íntima do herói, os seus segredos de família. Qual cereja em cima do bolo, os progenitores são interpretados pelos próprios pais de Cumberbatch e, na altura do lançamento da quarta temporada, foi divulgado que Benedict e Conan Doyle são primos em 16.º grau.

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