"O carisma do Samora era mais natural, selvagem e muito mais forte do que o do Fidel"

Brunch com Fernando Jorge Cardoso, economista luso-moçambicano e diretor-executivo do Clube de Lisboa.
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Desde que li um certo artigo de George Friedman, autor de livros como A Próxima Década e Os Próximos 100 Anos, a relembrar a vinda a Lisboa para uma conferência na Gulbenkian que tenho esta conversa em mente. "Nesta viagem, fomos convidados de um homem nascido em Moçambique que se formou na universidade e lá viveu até o início da idade adulta. Hoje um respeitado professor de economia, consultor e burguês convicto, fala alegremente sobre os seus dias em Moçambique como marxista igualmente dedicado", escreveu em maio de 2018 o fundador da Stratfor e atual presidente da Geopolitical Futures, tentando ilustrar um Portugal que sentiu ainda muito relacionado com África.

Com o acordo do visado, meu convidado neste brunch numa esplanada em Algés, revelo que Friedman se referia a Fernando Jorge Cardoso, diretor-executivo do Clube de Lisboa, a entidade que há quatro anos trouxe o americano a Lisboa para uma conferência com o mote "Desenvolvimento em Tempos de Incerteza". Volto, aliás, agora a agradecer a Fernando por ter-me posto então em contacto com Friedman para uma entrevista publicada no DN com o título "Os EUA são tão poderosos que podem perder guerras e não serem afetados".

Com um sumo de laranja à frente, Fernando confessa ter saudades das conferências pré-pandemia, mesmo que nem a covid-19 tenha impedido que fossem organizados pelo Clube de Lisboa grandes e pequenos eventos, o maior deles provavelmente o dedicado aos oceanos e que decorreu já este ano em formato misto, juntando conferencistas na capital portuguesa com outros que falaram através de zoom ou skype. Aos 69 anos, não faltam desafios a este economista chamado a toda a hora pelas televisões e rádios a falar de assuntos africanos ou de geopolítica e que é atualmente também professor catedrático convidado da Universidade Autónoma de Lisboa, investigador do Observare e do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE e coordenador de estudos estratégicos e de desenvolvimento do Instituto Marquês de Valle Flôr.

Nascido no Porto em 1952, Fernando foi viver para Nampula com sete anos, com a família a acompanhar o pai, que encontrou em Moçambique trabalho na área dos seguros. E foi naquela cidade que fez a escola primária e o liceu, envolvendo-se muito jovem na ação social promovida pelo bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, notório opositor da ditadura portuguesa. Na época, havia guerra em Moçambique, mas os combates entre o exército português e a guerrilha da Frelimo não se sentiam nas cidades e assim Fernando foi aos 18 anos naturalmente para Lourenço Marques, atual Maputo, estudar Economia.

Após a independência, proclamada em 1975, adquiriu a nacionalidade moçambicana e, além de diretor da Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane, trabalhou para o Departamento de Política Económica da Frelimo e com o vice-presidente do partido único, Marcelino dos Santos, também ministro do Plano. Samora Machel, o primeiro presidente de Moçambique, foi igualmente alguém com quem Fernando contactou e que lhe proporciona até hoje algumas belas histórias para contar, como a de um encontro com Fidel Castro.

"Tive a sorte de assistir a uma conversa entre ambos, que durou muito tempo, horas, e em que fiquei com uma sensação, obviamente biased porque na altura eu já era um grande fã de Samora Machel, mas fiquei claramente com a noção de estar na presença de duas pessoas carismáticas, mas em que o carisma do Samora era mais natural, selvagem e muito mais forte que o do Fidel, que era muito mais construído. Para ser mais concreto: o Samora surgia a 30 metros de distância, sem o estarmos a ver, só o facto de o ouvirmos a assobiar ou cantar, e todos ficávamos magnetizados. E quando falava com as pessoas nunca fazia discursos, fazia conversas. Os seus comícios podiam durar horas... horas a cantar, conversar, dançar, fazer perguntas, dar respostas, era um espetáculo de interação em que está toda a gente mesmerizada naquilo que o Samora faz, como fala e se apresenta. Fidel falava sete horas seguidas e toda a gente o ouvia. São dois tipos diferentes de captar pessoas. Ambos são líderes carismáticos mas completamente diferentes", conta Fernando, já com galão e torradas na mesa.

Samora e Fidel, é curioso como estes líderes eram tratados pelo primeiro nome, comento com Fernando, para depois perguntar sobre o grupo étnico de onde era oriundo o auxiliar de enfermagem que chegou a presidente da república: "há em Moçambique cerca de 16 línguas nacionais que correspondem a grupos sociais que dificilmente se entendem entre si ao falar. Os changanes são um grupo social do sul do país que existe essencialmente na província de Gaza mas também em Maputo, e ao qual pertencia Samora Machel. São considerados um grupo aguerrido, foram a guarda pretoriana do império Monomotapa. Changanes significa cães de guerra, portanto na verdade têm este prestígio. Os principais dirigentes da Frelimo são changanes e macondes, que é uma tribo do norte de Moçambique, bastante pequena. Não há mais de 300, 400 mil pessoas macondes em Cabo Delgado. Mas claramente os macondes foram, e isto foi constatado pelos militares portugueses, a parte populacional mais aguerrida durante a guerra armada de libertação nacional. Os presidentes moçambicanos foram todos changanes ou macondes, como agora Filipe Nyusi. Esta aliança é a coluna vertebral daquilo que a Frelimo sempre foi".

Outra história de Fernando tem dos tempos próximo da liderança moçambicana é uma visita de Vo Nguyen Giap, o grande general vietnamita que venceu franceses e americanos: "Em 1979, a China invadiu militarmente o Vietname, como punição pelo papel deste país no derrube de Pol-Pot no Cambodja em 1978. Na altura, a Frelimo tomou posição pública contra a invasão chinesa. Pouco depois, o general vietnamita Vo Nguyen Giap fez uma rápida visita a Moçambique, sendo recebido por Marcelino dos Santos numa reunião onde estive presente. Depois de ter contado que era professor de história antes de liderar a guerra contra franceses e americanos e de nos explicar que o Vietname existia como nação há cerca de dois mil anos, disse que vinha agradecer em nome do seu país à Frelimo pela posição pública tomada. Vinha também pedir que não o voltassem a fazer, pois ao longo da história os vietnamitas tinham sempre ganho as guerras com os chineses. Seria pois mais útil a Frelimo falar em privado com os chineses e tentar persuadi-los a parar com a agressão... E, como disse Giap, a China retirou, perante a resistência vietnamita!"

Entre 1983 e 1985, Fernando foi diretor-geral de uma empresa agroindustrial no sul de Moçambique, a Maragra, numa época de guerra civil entre a Frelimo e a Renamo. Saiu por razões pessoais e a seu pedido, para estudar em Lisboa, com uma bolsa. Chega Portugal em 1985 ("já tinha estado na Europa, em capitais como Moscovo ou Sofia, mas desde os meus seis anos nunca mais tinha visitado o país") e em 1991 doutora-se pelo ISEG. É o primeiro doutorado da Eduardo Mondlane em Economia e faz períodos de três meses por ano na universidade moçambicana como professor. Em 1993 volta a solicitar um bilhete de identidade português e cada vez mais a sua vida profissional e académica se fixa em Portugal. Chega a ser vice-reitor da Universidade Moderna, por convite de João de Deus Pinheiro. Durante 25 anos colabora com o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais como responsável por África.

Moçambique é a sua pátria africana, mas Angola, outra antiga colónia portuguesa, também acabou por ter um papel na vida de Fernando, como conta, enquanto a mim, no âmbito deste brunch no café Jardim Nativo, me servem um iogurte com frutos vermelhos e ovos mexidos.

"Estive em Angola várias vezes, em 1994 e 1995, após a assinatura dos acordos de Lusaca, que levaram a uma espécie de paz armada que se transformou em guerra armada a partir de 1997. Nesses meses em que lá estive fui o chefe da equipa de uma coisa chamada programa de reconstrução e reabilitação comunitária, dirigida pela PNUD. Trabalhei no Planalto Central. O episódio que mais ficou gravado na minha memória foi um que vivi na capital do Bié, Cuíto. O Cuíto esteve dois anos sob intenso bombardeamento de artilharia entre as duas forças em combate. A UNITA ocupava os caminhos de ferros, um bocado distante da cidade, o MPLA ocupava o aeroporto, a UNITA ocupava também o palácio do governador, e do outro lado da rua, a casa do governador era ocupada pelo MPLA. Durante dois anos houve bombardeamentos grandes entre estas partes, de tal forma que quando chego ao Cuíto, a cidade estava completamente destruída. A equipa que eu chefio, era eu e três angolanos, um angolano branco, um mulato, um negro ... digo isto porque o angolano branco era filho do antigo juiz do Cuíto, então quando chegamos lá ele quis ir visitar a cidade. No meio daquela destruição imensa, a única zona intacta era a casa do governador, onde estava a guarnição. Havia meia dúzia de pessoas na cidade, então ao passearmos pela rua estávamos silenciosos e ele virou-se para mim e perguntou se não achava nada de estranho. Não percebi o que ele queria dizer. "Não há lagartixas". E não havia. Cuíto fica num altiplanalto mas a vegetação era muito parecido com Nampula, onde eu vivi, e de facto no Cuíto não havia lagartixas, nem cães, nem gatos, nem nada vivo à nossa volta, o que mostra a autenticidade de histórias que foram contadas anteriormente, até que a igreja católica mandou parar com a conversa de as pessoas terem sido obrigadas a comer aquilo que tinham, até com atos de canibalismo que terão existido. Quando vamos dormir a primeira noite, a casa do governador tinha um gerador que produz eletricidade a partir da hora em que o sol se punha, 18h, 19h, e havia uma televisão num canal angolano. A guarnição, que era constituída por sete membros com kalashnikov, abandonava o posto assim que se ligava a televisão e sentava-se connosco na sala principal da casa, e interessantemente os enormes reposteiros de veludo estavam inteiros. Estávamos todos sentados em cadeiras em frente à televisão, e de repente de trás do reposteiro sai um rato pequenino que percorre um grande tapete, à nossa frente, de um lado para o outro. Um de nós virou-se para o guarda armado a dizer "está ali um rato". E esse alguém, que era das forças governamentais, respondeu o seguinte, que ainda hoje me deixa arrepiado: "nós sabemos, mas a esse nós não fazemos mal porque ele é um sobrevivente". Significa que em toda aquela situação do Cuíto, em que tudo o que podia ser comido foi comido, e no momento em que termina a guerra, poucos dias depois, nós encontramos um rato vivo e ele é considerado um sobrevivente e é deixado viver. Isso deixou claro o que se lá passou naqueles anos", conta.

Visitante regular de Moçambique, e mantendo a nacionalidade, Fernando estuda a geopolítica global - falámos, claro, da guerra na Ucrânia, e já agora também de como os clubes de futebol e a gastronomia portuguesa continuam populares nas ex-colónias - mas continua a dedicar-se muito aos temas africanos, pelo que não resisto a perguntar se é otimista sobre o futuro do continente, sobre o futuro dessa África onde cresceu e que continua acarinhar.

"Eu sou contra a designação África que não seja uma designação histórico-geográfica. Do ponto de vista político e económico não existe África. Existem países africanos, muito diversos entre eles, e dentro deles encontramos subdivisões que ainda não são um Estado. O que quero dizer é que os Estados africanos, na sua quase totalidade, são Estados demasiados jovens que sofreram processos e cortes sociais muito grandes e que me levam a dizer que nós, regra geral, em África estamos a viver, na maior parte dos países, um período de afirmação do Estado e portanto das classes que dirigem esse Estado. Nesta altura, o que verifico na generalidade dos países africanos é que a sua estrutura económica atual não mudou substancialmente da estrutura que foi criada durante o tempo colonial e que já existia, em muitos casos, já pré-existia a esse tempo, considerando-o após a conferência de Berlim, que é o facto de os países dependerem da exportação de matérias-primas, particularmente minerais, incluindo gás e petróleo, e de alguns produtos agrícolas. Isso é o que África tem para trocar com o mundo exterior. Existem alguns lugares africanos, a norte e a sul, onde existem pólos de inovação interessantes, mas na sua generalidade os Estados africanos estão claramente na fase de afirmação dos próprios Estados e as elites que lá estão estão na etapa de afirmação do seu próprio poder. Não sou otimista no sentido de não considerar que haverá um salto em frente na industrialização da maior parte dos países. A longo prazo acho que acabará por acontecer, não em África, mas em certos países africanos", responde o diretor-executivo do Clube de Lisboa, do qual sou, aliás, membro, tal como alguns outros jornalistas, muitos académicos, diplomatas, etc. Fernando relembra-me de que dia 4 estarei numa Lisbon Talk em formato online a debater o impacto global do conflito entre a Rússia e a Ucrânia com Ana Santos Pinto, Luís Tomé e José Pedro Teixeira Fernandes. Uma pergunta pelo menos terá de ser sobre África, e no site de Friedman, o Geopolitical Futures, uma análise sobre o gás africano como alternativa ao gás russo já me está a inspirar.

leonidio.ferreira@dn.pt

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