"O Brasil será sempre um ator relevante na cena internacional"

Embaixador em Brasília, Luís Faro Ramos fala da força da relação bilateral, da pujança da comunidade portuguesa e também do papel de Portugal como aliado estratégico do Brasil junto da União Europeia. Mas admite que a pandemia dificulta, e muito, o seu trabalho.
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Costuma dizer que o Brasil é o navio almirante da língua portuguesa. Nestes seus meses iniciais em Brasília, como tem vivido a pujança cultural brasileira? Descobriu algum escritor, algum cineasta? Ou está a dedicar-se aos clássicos brasileiros?
A expressão, que utilizei algumas vezes a respeito do Brasil enquanto fui presidente do Instituto Camões, era ilustrativa da capacidade que o Brasil tem para promover a língua portuguesa. Antes admirava o navio, agora estou a bordo. É uma experiência muito diferente das que eu tive anteriormente. Sinto que as minhas funções no Camões me estão a ser de grande utilidade para entender o Brasil. Os quatro meses que levo de Brasil foram muito limitados no que diz respeito a contactos presenciais. Ainda assim já tive dois momentos culturalmente marcantes, os encontros com a escritora Nélida Piñon e com o até agora único astronauta brasileiro, o ministro da Ciência e Tecnologia. Marcos Pontes fala com grande entusiasmo do futuro do Brasil verde e sustentável. Mostrou-me uma fotografia impressionante tirada por ele a 400 quilómetros da Terra. Nélida Piñon lançou recentemente o livro Um Dia Chegarei a Sagres, visitei-a no seu apartamento no Rio de Janeiro, tivemos uma conversa fascinante sobre literatura e o momento político brasileiro. Antes de chegar ao Brasil li Brasil: Uma Biografia, da Heloísa Starling e da Lilia Schwarcz (aconselhada por um amigo meu grande conhecedor do Brasil), e mais alguns livros sobre a história do país. Continuo a tentar penetrar no universo singular de João Guimarães Rosa. E, vivendo em Brasília, esforço-me por entender melhor o lugar, exemplo de simbiose entre a natureza e a intervenção humana, lendo a admirável história do naturalista alemão Alexander von Humboldt. E vim encontrar na embaixada uma equipa de luxo, à altura da importância que este país tem para a política externa de Portugal.

Como diplomata, tem larga experiência de viver noutras capitais. Na América Latina foi embaixador numa cidade com 500 anos, Havana, e agora vive em Brasília, uma metrópole do século XX nascida da genialidade de Oscar Niemeyer. Como se tem adaptado à capital brasileira?
Cuba e o Brasil têm vários pontos em comum, basta pensar que ambos estão entre os principais repositórios de música do mundo. Já Havana e Brasília não poderiam ser capitais mais diferentes. De um lado o passado opulento e ocre, do outro as linhas brancas retas e futuristas. O poeta brasileiro Eucanaã Ferraz, num belíssimo texto a que deu o nome de No reino de Ártemis - A viagem de Sophia ao Brasil, evoca a entrada da grande poeta portuguesa em Brasília, de carro, vinda do Rio de Janeiro numa madrugada de 1966. E cita: "Muitas horas depois no fundo da noite, da distância e da solidão Brasília surgiu, como uma estrela que se levanta no horizonte do mar. Foi crescendo devagar direita e lisa, destacando os seus volumes, desenhando as suas linhas, cada vez mais luminosa e fabulosa. É sabido que as cidades modernas, vistas ao longe de noite, são feéricas. Mas Brasília é mais feérica. Os seus volumes lisos, as suas linhas direitas, foram-se progressivamente destacando e subiram luminosas e ritmadas no céu escuro da noite. E à medida que nos aproximávamos e penetrávamos nela parecia-nos sempre mais fabulosa." Estamos neste momento a preparar uma exposição de dois artistas, uma portuguesa (Gabriela Albergaria) e outro brasileiro (Marcelo Moscheta), Oréades, que é um outro olhar sobre Brasília, à volta da comunicação entre o homem e a natureza através da arte. Se Kubitschek e Niemeyer ficam na história do Brasil como os construtores de sonhos, Eusébio Leal fica na história de Cuba como o reconstrutor da pérola das Antilhas. A Brasília de hoje continua a ser um lugar singular, onde ao corpo direito e liso se foi juntando ao longo dos anos a alma do brasiliense. A capital já não é aquela cidade que só vive de segunda a sexta. E para mim, que sou adepto do desporto, é uma cidade perfeita.

A pandemia está a condicionar muito o seu trabalho como embaixador?
A diplomacia vive muito do contacto, do aperto de mão ou do abraço, da conversa olhos nos olhos. Tudo isso mudou. Espero que não para sempre! O meu trabalho está bastante condicionado, sobretudo porque os contactos habituais presenciais entre os diplomatas acreditados no país são praticamente inexistentes, e estão também suspensas as visitas aos diversos estados brasileiros. Embora tudo se vá fazendo virtualmente. Um dos objetivos a que me propus foi visitar todos os pontos do país onde vivem e trabalham portugueses e lusodescendentes, e esse projeto tem sido adiado (embora já tenha conseguido visitar São Paulo e o Rio de Janeiro). É uma prioridade que será retomada logo que possível. Ao mesmo tempo, esta situação permitiu-nos repensar algumas metodologias de comunicação. Por exemplo, apostámos na dinamização de conteúdos nas nossas redes sociais, o que nos fez multiplicar significativamente o número de pessoas a quem chegamos.

Como descreve as relações bilaterais? Existe uma lógica que é superior às mudanças de governantes de um lado e do outro do Atlântico?
Para além das relações Estado a Estado, a força que une os dois países é avassaladora, é até mais do que lógica, é energia positiva para utilizar uma expressão bem brasileira. As comunidades portuguesa no Brasil e brasileira em Portugal só a tornam mais forte. As pessoas contam sempre, e aqui as pessoas contam muito. Não há nenhuma área onde não haja relação. Da agricultura à ciência, da defesa à educação. Uma relação muito densa, alimentada por uma rede à dimensão do Brasil que inclui, além da nossa comunidade composta por mais de um milhão de pessoas, dez consulados-gerais e vice-consulados, sete cátedras Camões e 18 câmaras de comércio portuguesas.

O Mercosul celebrou agora 30 anos. O acordo com a União Europeia está a ser condicionado por preocupações ambientais. Há condições para avançar essa parceria entre Mercosul e UE?
O acordo é muito mais do que um avanço fundamental na área do comércio entre 31 países (27 da UE e quatro do Mercosul). É de uma importância estratégica evidente para a União Europeia. Porque estão em causa as relações da União Europeia com o espaço atlântico, que é fulcral para cumprir a Europa global. Somos defensores do comércio livre, com regras. O acordo demorou 20 anos a negociar, está fechado e, pelo menos na nossa opinião, bem fechado. Dito isto, há de facto preocupações, sobretudo do lado europeu. Temos de as pôr em cima da mesa, discuti-las de forma honesta e transparente e, sobretudo, não poluir a discussão com temas que não têm que ver com o acordo. É isto que a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia está a fazer, e é isto que o Brasil também me parece disposto a fazer. Vale a pena ler a este propósito um artigo de opinião do negociador-chefe brasileiro, muito pertinente, republicado nesta semana no DN. Estamos a meio da presidência portuguesa, veremos até onde poderemos chegar nos próximos meses. Temos ambição, mas somos realistas.

Portugal pode funcionar como um aliado estratégico do Brasil junto dos 27?
É isso que se espera de nós e é essa a nossa responsabilidade. O Brasil é parceiro estratégico de Portugal e é também parceiro estratégico da UE. Apesar deste enquadramento, a sensação é de que esse relacionamento estratégico não se tem cumprido. Avanços no Acordo UE-Mercosul ajudariam certamente. Ao mesmo tempo, Portugal também pode funcionar como uma voz moderada do pontos de vista da UE junto do Brasil. Essa é afinal uma das nossas forças no cenário internacional, sermos a voz da moderação, do diálogo, e construtores de pontes.

Da agropecuária à aviação, o Brasil dá cartas em muitos setores da economia. Mas já teve o sexto maior PIB mundial e agora saiu dos dez primeiros. Até onde pode ir o Brasil?
O Brasil será sempre um ator relevante na cena internacional. Pela sua dimensão, pelo seu imponente mercado e diversidade de produtos e de matérias-primas. Pelo seu capital humano, fortíssimo por exemplo na área das indústrias criativas. Há uma dinâmica permanente, sempre em alta rotação. É verdade que o momento atual não é dos melhores, é verdade que o Brasil se confronta com enormes desafios, mas num grande país como este, di-lo a história, as crises não duram para sempre. O Brasil tem tudo para dar certo.

Como acha que os brasileiros veem hoje Portugal? É já muito mais do que a terrinha, certo?
Essa expressão continua a ser utilizada mas de uma forma completamente diferente. Por diversas razões, está na moda hoje ter raízes portuguesas. Fatores como a modernização, o novo cosmopolitismo de Portugal ou a fortíssima aposta da TAP nas rotas brasileiras contribuíram. Talvez também a consciência de que o português é uma das línguas com mais presente e sobretudo com mais futuro no mundo. Sem esquecer o sucesso que alguns treinadores portugueses de futebol, como Jorge Jesus e Abel Ferreira, tiveram ou estão a ter por aqui!

A comunidade portuguesa continua a ser bem-sucedida no Brasil?
Bem-sucedida, bem integrada e renovando-se. Há uma mescla muito interessante entre a veterania e a juventude. Há portugueses e lusodescendentes de norte a sul e de leste a oeste do Brasil. No momento atual, caracterizado por dificuldades de ordem social em parte da população, a nossa comunidade não foge à regra. Impõe-se por isso seguir com particular atenção certas situações mais complexas. Os nossos postos consulares estão a fazê-lo, regularmente.

Falta pouco mais de um ano para o bicentenário da independência. Começam já a haver projetos bilaterais para assinalar a data de separação dos dois países?
A celebração dos 200 anos da independência do Brasil será antes de mais uma festa brasileira. Claro que estando essa independência tão ligada a Portugal e à nossa própria história, e tendo ela decorrido do modo completamente singular como decorreu, estranho seria que Portugal não estivesse envolvido. No que nos diz respeito, estamos ainda numa fase de reflexão, de amadurecimento de ideias, e de saber também como está o lado brasileiro a organizar-se. Haverá certamente mais a dizer daqui a uns meses.

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