O bairro "mais democrático" de Lisboa quer voltar a chamar moradores
Há quem lhe chame o "mais democrático dos bairros de Lisboa", que ao longo dos séculos juntou nas suas ruas populares, nobreza e a alta burguesia lisboeta, antes de se transformar no grande bairro boémio da capital. Foi lá que se instalou, em finais do século XIX, boa parte dos mais importantes títulos da imprensa portuguesa - 80% dos diários lisboetas passaram por lá.
É precisamente um destes quarteirões, um conjunto de sete edifícios que são atualmente património municipal, entre a Rua do Norte e a Rua do Diário de Notícias - um dos imóveis foi precisamente a sede do DN até 1940 -, que a Câmara de Lisboa se propõe agora reabilitar, com a construção de 45 fogos que terão como destino o programa de arrendamento acessível. Com tipologias entre T0 e T3, a autarquia aponta sobretudo à população mais jovem, numa freguesia que sentiu como poucas a saída de moradores ao longo dos últimos anos, uma situação que a presidente da junta de freguesia classifica como "dramática".
Segundo Carla Madeira, que falava ontem na apresentação do projeto, a freguesia da Misericórdia perdeu nos últimos sete anos mais de três mil residentes. Em 2013, quando a freguesia foi criada, "tínhamos 13.200 eleitores, ao dia de hoje temos 10.047". Uma "diminuição abrupta", diria ao DN, com a saída sobretudo de moradores mais velhos, com contratos antigos, em resultado da "lei do arrendamento de 2012 [a chamada "lei Cristas"]". Mas também, posteriormente, de moradores mais jovens, que não tiveram os contratos renovados ou foram confrontados com rendas incomportáveis dado o "aumento da procura de casas para alojamento local".
O projeto apresentado ontem prevê a construção de 19 fogos de tipologia T0, outros 19 de tipologia T1, seis T2 e um T3. O conjunto que atualmente integra sete edifícios, visivelmente degradados, ficará com apenas cinco depois das obras, com um pátio interior conjunto. Os pisos térreos não serão destinados a habitação, mas a um espaço multiúsos destinado a projetos independentes e associativos na área do jornalismo ou produção de conteúdos. De acordo com a arquiteta da autarquia Sílvia Nereu, a intervenção será o "menos intrusiva possível", procurando "manter as características preexistentes deste conjunto, a nível sobretudo de volumetrias, fachadas e também na geometria de implantação dos vários edifícios".
"Este projeto vai-se transformar num projeto emblemático da cidade de Lisboa e da nova política de habitação. O que conseguirmos fazer aqui será mobilizar património municipal, reabilitar edifícios que estão abandonados, sem uso, e inseri-los numa estratégia de qualificação, de revitalização de uma zona com a história do Bairro Alto", referiu Fernando Medina. Sublinhando que esta é uma zona da cidade "muito assente na fruição noturna", o presidente da autarquia defendeu que essa vertente deve ser equilibrada "com um aumento da população residente" e prometeu que vai avançar a "requalificação integral de todo o espaço público do Bairro Alto". Medina defendeu também que é preciso repensar o que é que o bairro tem para oferecer "em permanência durante o dia", mas essa é uma questão que "precisa de um debate mais aprofundado". Quanto à reabilitação do espaço público, Carla Madeira adianta que este é um projeto que está ainda a ser preparado, e que passará pela requalificação do saneamento, dos passeios e da estrada.
O concurso público para a reabilitação dos edifícios deverá ser lançado em 2021, com um investimento previsto de sete milhões de euros.
"Mais de 80% dos diários lisboetas do século XX - 173 dos 211 identificados por Mário Matos e Lemos em 2006 - passaram pelo Bairro Alto (ou pelo Chiado, incluído nestas contas pela proximidade geográfica e porque as redações de alguns títulos 'saltitaram' de uma zona para outra)", escreve o jornalista e professor universitário Paulo Martins, no livro O Bairro dos Jornais - As Histórias Que Marcaram o Bairro Alto e os Seus Jornais.
No século XIX, a "enorme concentração de tipografias no Bairro Alto", que iam ocupando os espaços amplos das antigas cavalariças e cocheiras dos palácios abandonados pela nobreza após o terramoto de 1755, acabaria por arrastar a instalação de jornais para o mesmo local, transformando-o numa espécie de "capital da imprensa". O DN sairia em 1940 para o edifício da Avenida da Liberdade. Já na década de 90 do século passado, o encerramento do Diário de Lisboa e, pouco depois, o do Diário Popular marcariam o fim de uma era. Atualmente, só o jornal A Bola permanece na sua sede original, na Travessa da Queimada, no que foi em tempos o palácio da família Rebelo Palhares.