"O António-Pedro Vasconcelos é chato, mas pelas boas razões"

Juntámos no atual Parque Mayer o argumentista Tiago R. Santos e o realizador António-Pedro Vasconcelos do filme <em>Parque Mayer. Um</em>a das duplas mais coerentes do cinema narrativo português.
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Em 10 anos estiveram juntos em cinco filmes (o primeiro foi A Bela e o Paparazzo, em 2007). António-Pedro Vasconcelos, 79 anos, realizado,) e Tiago R. Santos, 42 anos, argumentista. Uma dupla que funcionou para fazer um cinema de narrativa, coisa ainda rara no cinema nacional. O DN colocou-os frente a frente para falarem de Parque Mayer, manifesto de liberdade situado na Lisboa dos anos 30, num Parque Mayer que já não existe. "Não filmámos nada lá, tudo em estúdio recriado, pois muitos daqueles teatros já não existem. Mas o importante é que antes havia ali todo o mundo à volta, muito para além da revista. Aquilo era uma espécie de Feira Popular - as pessoas iam para lá e divertiam-se. Depois do teatro ceavam e bebiam também um copo", começa por contar APV durante a sessão de fotografias neste Parque Mayer muito reciclado de 2018.

Parque Mayer, o filme, chega hoje às salas de cinema e, para já, a dupla desfaz-se (o próximo filme de António-Pedro já não tem a pena de Tiago).

Será que a revista em 2018 deveria ser revista ou reformulada?

António-Pedro Vasconcelos (APV) - O que te posso dizer é que a revista resiste, sobretudo graças ao Hélder Freire Costa: o Maria Vitória continua com o teatro de revista. O Flávio Gil, que escreve as revistas, é fora-de-série! Porém, parece-me utópico hoje refazer a revista conforme ela era, mesmo havendo espaço para este modelo de divertimento com coristas, humor, musical e crítica social!

Tiago R. Santos (TRS) - Claro que há espaço! Há espaço para tudo... Cheguei a ver algumas revistas enquanto pesquisava para o argumento e aquilo tem clima, já para não falar de espetadores.

Mas o filme nasce quando?

TRS - O filme nasce quando estávamos a pensar no próximo projeto depois de Amor Impossível. Chegámos a pensar numa ideia sobre jornalismo e a falência sobre determinada Comunicação Social. Não tinha só a ver com "fake news" mas a forma como a net intervém agora no jornalismo e toda a questão do "click bait", só que unca conseguimos encontrar uma chave que nos permitisse encontrar uma história . Acabou por ser o Tino Navarro, o produtor, que teve a ideia de fazermos uma coisa sobre o Parque Mayer. Ele não queria que fosse na altura do Até Amanhã Camaradas [obra que produziu com realização de Joaquim Leitão e que documenta a juventude de Álvaro Cunhal]. Depois, chegámos à conclusão que o melhor seria ambientar a história em 1933, altura decisiva na implementação do Estado Novo, perfeita para dar uma carga social e política bastante interessante ao filme. Tratou-se de um período em que era possível abordar coisas muito relevantes do ponto de vista histórico e para os nossos dias, nomeadamente com o aparecimento de todos estes Trumps da vida.

Hoje, parece inevitável quando aparece um filme sobre o passado haver uma relação com o presente. O Sérgio Tréfaut disse que Raiva, que é também uma história sobre os horrores do fascismo em Portugal, evoca um certo presente...

APV - Sim, mas as coisas hoje mudaram... E mudaram formalmente - pelo menos hoje existe liberdade. Não há uma censura oficial e isso é uma grande diferença, independentemente de esta sociedade ter outros perigos, por muito camuflados que sejam. Mas estamos a viver uma época de descontentamento generalizado, tal como na altura de Hitler, de Salazar e de todas as ditaduras pós Primeira Guerra. Um dos objetivos do filme é mostrar como o regime se instalou quase sem as pessoas darem por isso. Era importante mostrar como aquela máquina funcionava, quase não há filmes sobre o salazarismo... Depois queríamos mesmo fazer um filme sobre o Parque Mayer- não há filmes sobre o Parque Mayer! E o que é curioso, o melhor dos cinquenta anos do fascismo no cinema português foi a comédia! É a única coisa que se salva e os atores e autores vinham do Parque Mayer.

Muitos acreditam que as comédias clássicas como A Canção de Lisboa ou O Pátio das Cantigas eram filmes do Estado Novo. Não viram o documentário Fantasia Lusitana, de João Canijo?

APV - Na série que fiz, Sonhar era Fácil, mostrava que a comédia portuguesa era a melhor maneira para estudar o funcionamento e evolução do salazarismo e todas as suas ambiguidades. O que posso dizer é que é irresponsável dizer que as comédias clássicas do nosso cinema eram salazaristas. Para este filme fizemos pesquisa, eu com uma cultura mais antiga, o Tiago com o seu olhar de uma nova geração e decidimos incorporar a MITRA, que era um sítio onde iam os indesejáveis.

TRS - A nossa descrição da MITRA não é nada exagerada. Eles prendiam e espancavam as pessoas sem passar por tribunais.

APV - Era uma prisão de costumes e não era preciso qualquer processo de tribunal. Carteiristas, chulos...

TRS - Homossexuais, prostitutas... Todos acabavam por ir lá parar.

Estamos a viver uma altura em que os filmes portugueses têm uma dificuldade enorme em encontrar público. Mesmo os filmes pensados para um alvo mais vasto têm tido salas vazias. Acreditam que Parque Mayer pode inverter essa tendência?

APV - Espero que sim, mas eu não me posso queixar muito - os meus filmes têm resultado. O que se passa é que a maioria dos filmes portugueses não é apelativa... A maior parte dos realizadores portugueses tem o preconceito de que um filme com público é um filme comercial e já não é artístico! Isto é uma aberração. Quando não fazem espetadores, dizem que não há problema, é para os "happy few". Para eles, um filme que faça espetadores é para o Zé Povinho. Custa-me muito estar sozinho com este discurso.

TRS - O António-Pedro é um dos poucos cineastas narrativos e só continua a trabalhar graças ao seu esforço. Agora já é complicado não o deixarem filmar... Qualquer jovem que queira fazer uma primeira obra percebe pelos projetos que vencem no ICA que o que o júri quer são filmes onde não se passa nada. É muito complicado encontrarmos novas formas de desenvolvimento de narrativa... É um círculo vicioso e faz com que não surja ninguém a querer contar histórias.

Quando escreves um filme para o APV escreves de forma diferente de quando escreves para um outro realizador, certo?

TRS - Sim, tenho que encontrar um certo equilíbrio. Tenho de encontrar algo no qual faça o António-Pedro acreditar no guião para filmar, ao mesmo tempo que tenho de acreditar na cena para a escrever... Se ele achar que é bom haver determinada cena e eu não concordar, aí tenho dificuldades.

APV - Temos muitas discussões...

TRS - Não vale a pena fingir que isto é fácil, não é mesmo... Trata-se de um trabalho minucioso. Ele é chato, mas um chato pelas boas razões.

APV - O guião é muito importante e as pessoas tendem a desvalorizá-lo. Quanto mais sólido está um guião mais à vontade estou para irmos improvisando...

TRS - Curiosidade: uma vez, um júri do ICA comentou que um guião meu não deixava respirar poesia...

APV - Isso é extraordinário.

TRS - O problema é defender-se que todo o cinema português tem de ser igual! Penso que há lugar para diversos tipos de cinema... Basicamente, defende-se que o que apenas conta é um só tipo de cinema. Os júris do ICA defendem que esse é o caminho a seguir, eles desprezam a importância de contar histórias e de as pessoas poderem ver um filme e identificarem-se com ele. Noções como a narrativa e intriga são perigosas para esses jurados.

Assumem que Parque Mayer é declaradamente anti-fascista?

TRS - Tudo o que escrevo é anti-fascista!

APV - Não... Não gostava de o dizer dessa forma. Não se trata de uma obra panfletária e militante. É um filme sobre a liberdade, que é um valor supremo.

No "tag" promocional lê-se que é um filme que vai trazer também alegria aos portugueses...

APV - Vai trazer emoções... A questão aqui da liberdade é que pode ajudar a lembrar às pessoas o valor dela quando a perdemos. E a liberdade é um bem frágil. Vivi o fascismo uns anos depois à ação do filme - não o vivi na pele pois não fiz a guerra nem nunca fui preso, mas sempre fui contra. Claro que tive problemas com a censura e vi grandes amigos meus a partirem para o exílio e outros acabaram na prisão. Com o salazarismo e o marcelismo vivemos um horror!

O Tiago já realizou uma curta (Vícios para uma Família Feliz) e quer voltar a realizar, embora em Portugal não tenhamos a tradição do argumentista que se torna realizador...

TRS - Pois não, mas cá há a tradição de quê!? Mas não vou desistir.

APV - O grande cancro do cinema português é a Escola de Cinema, o Conservatório! É onde tudo começa. Aquilo é uma coisa monstruosa, com professores a ensinar há cinquenta anos e que fazem daquilo profissão! Eles formatam a cabeça aos alunos, alunos esses que vão para lá pois sabem que assim mais facilmente terão apoio dos júris do ICA. E as pessoas não têm noção dos números de espetadores de filmes que custam 600 mil euros. O Parque Mayer teve essa verba, mas podiam dar o mesmo dinheiro a um filme que é sobre um tipo fechado num elevador...

O Louis Malle fez um filme genial chamado Um Fim de Semana no Ascensor...

APV - Ok, pode ser um grande filme mas não custa o mesmo! No Parque Mayer precisámos de ter uma grande produção, tivemos de recriar todo o Parque Mayer de época! E há quem pense que o cinema português está melhor, pois lê nos jornais chamados de referência que os filmes podem vencer lá fora nos festivais. Os leigos pensam que o cinema português é muito conhecido lá fora - não é! Se formos a uma cidade do estrangeiro não vemos nenhum filme português anunciado num cartaz... O nosso cinema é o menos vendido lá fora e com menos prémios nos festivais. Óscares? É um desastre, nunca tivemos presença lá!

As pessoas conhecem o benfiquismo do APV dos tempos em que comentava futebol na televisão, mas talvez não saibam a paixão pelo Sporting do Tiago...

APV - Temos algo em comum: tivemos em anos sucessivos um dos maiores treinadores do mundo, Jorge Jesus!

Era bom para o Benfica ele voltar?

APV - Então não era!? Espero bem que volte, mas é pena que tenhamos perdido 4 anos...

TRS - Mas o Benfica venceu sem ele...

Já percebi que o Tiago não é do clube de fãs de Jorge Jesus.

TRS - Não é um treinador fabuloso! Ele fez uma grande primeira época connosco, mas acabámos por perder o campeonato porque o Bryan Ruiz falhou aquele golo de baliza aberta contra o Benfica. A partir daí foi sempre a piorar. Cada ano pior do que o outro. Aquele jogo com o Real de Madrid em que perdemos nos últimos momentos e que ele vem dizer que se estivesse no banco não teria acontecido a derrota faz com que perca o controlo do balneário. Ele pôs-se acima dos jogadores! Depois começou a falar um espanhol que era digno de uma cena de comédia. Se tivesse escrito aquela conferência de imprensa, o António-Pedro diria que estava a exagerar!

APV Seria uma comédia... Mas nunca vou querer fazer um filme que tenha futebol. O que tenho a dizer é que o Sporting, no último ano dele, poderia ter ganho tudo, mas é preciso ver o que o Bruno de Carvalho fez àquele clube... A maneira como Jesus defendeu os seus jogadores até ao fim é extraordinária! O mais importante nele é a qualidade de treino e do jogo, já para não falar na maneira como valoriza os jogadores. E há muito poucos treinadores no mundo que saibam analisar o jogo como ele. Só não ganhou mais títulos no Benfica porque o Vieira não o apoiou... Mas chegou ao Sporting e fez uma revolução.

TRS - A qualidade do futebol no último ano foi mesmo diminuindo...

APV - Não!

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