Estava o embaixador Fernandes Fafe no exercício dessas funções quando Saramago visitou a cidade da Praia e depois Mindelo. Na realidade não foi só ele. Nesse tempo, um considerável número de escritores e outros artistas portugueses vieram até nós, dizia-se que por mérito do embaixador que muito se preocupava com o intercâmbio entre intelectuais dos dois países. Estou a lembrar-me da Isabel Barreno, da Maria Velho da Costa e de tantos outros, embora me lembre particularmente da pintora Graça Morais, com quem acabamos estabelecendo relações de grande amizade..Fafe era um homem de letras culto, bem-humorado e de fácil convívio. Vinha muitas vezes a São Vicente e, certa vez, creio que por indicação do cônsul, procurou-me como advogado a favor de um português encrencado. Nesse tempo era cônsul de Portugal um engenheiro cabo-verdiano casado com uma portuguesa, mas que entretanto ficou doente, pelo que muito naturalmente a esposa passou a exercer as funções de cônsul e a assumir-se como consulesa. Ela e Fafe pareciam manter relações de muita cordialidade. Ela gostava de exprimir opiniões ousadas mas de que se arrependia imediatamente. E então exclamava, Ah, senhor embaixador, se calhar acabo de dizer uma grande asneira! E o embaixador, sorrindo bonacheirão, tranquilizava-a, Não, minha cara senhora, uma consulesa nunca diz uma grande asneira..Foi ele que me disse que tinha convidado Saramago a vir a Cabo Verde. Na altura estávamos às voltas com a revista Ponto&Vírgula, de que tínhamos acabado de publicar o primeiro número..Era o ano de 1983, já oito anos sobre a independência nacional, e a nível intelectual o país vivia o marasmo do passado. Praticamente a única novidade tinha sido a criação da Alternativa, onde se vendiam as peças de cerâmica do Atelier Mar e onde bebíamos chá de abacate aos fins de tarde. Vamos tentar agitar essa pasmaceira, vamos criar uma revista literária, decidimos Leão, Rui e eu..Estávamos conscientes de que em consequência da independência impunha-se a criação de qualquer coisa nova que mostrasse o corte umbilical com o passado. Assim, decidimos que a revista teria de ser algo literariamente original, e era óbvio que a sua escrita, particularmente o editorial, deveria refletir essa inovação. Estávamos convencidos de que iríamos receber imensa colaboração de jovens ansiosos por publicar... Bem, infelizmente não foi assim, e não fossem os mais velhos não teríamos o Ponto&Vírgula. De modo que a eventual inovação ficou pelo editorial que me encarreguei de escrever..Três ou quatro tentativas para o fazer resultaram falhadas, não mereceram a concordância dos outros. Acabei ficando farto daquilo tudo e então juntei pedaços dos editoriais rejeitados, mais bocados das nossas discussões e fiz uma coisa que não respeitava as regras da pontuação e disse-lhes: "Se não é isso então não sei fazer melhor!" Finalmente concordámos..Com aquilo acreditei ter inventado uma forma de escrever. Até que poucos dias depois uma amiga portuguesa que na altura vivia na Praia, sem qualquer explicação, mas certamente por causa do editorial, me mandou o Memorial do Convento que teria saído há um ano..Nunca tinha lido nada do Saramago, e logo me encantou a aparatosa preparação de Dom João Quinto para a justa tarefa de bem emprenhar Sua Majestade a Rainha e pouco depois já sorria com gosto, sobretudo desse esforço do autor em contar uma estória como se o humor não existisse na paródia das situações que cria e o riso estivesse apenas na entonação das palavras na sua voz escrita..Fui ouvir Saramago no Centro Cultural Português em Mindelo. Falou de si e da sua obra. Impressionou-me encontrar uma pessoa de tão bom humor, tanto no falar como no escrever, e que no entanto não se ria, parecia não saber como se deve fazer para se rir. Retive a estória que contou de alguém que lhe tinha telefonado a lamentar muito pesaroso não estar a conseguir penetrar nos seus livros. Experimenta lê-los em voz alta, disse que sugeriu à pessoa..Rimo-nos todos dessa observação, mas lembro-me de a ter achado muito sábia. É que mesmo escritas, as estórias são contadas, a gente as ouve, e então a melhor forma de as entender deve ser lendo-as em voz alta..Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018
Estava o embaixador Fernandes Fafe no exercício dessas funções quando Saramago visitou a cidade da Praia e depois Mindelo. Na realidade não foi só ele. Nesse tempo, um considerável número de escritores e outros artistas portugueses vieram até nós, dizia-se que por mérito do embaixador que muito se preocupava com o intercâmbio entre intelectuais dos dois países. Estou a lembrar-me da Isabel Barreno, da Maria Velho da Costa e de tantos outros, embora me lembre particularmente da pintora Graça Morais, com quem acabamos estabelecendo relações de grande amizade..Fafe era um homem de letras culto, bem-humorado e de fácil convívio. Vinha muitas vezes a São Vicente e, certa vez, creio que por indicação do cônsul, procurou-me como advogado a favor de um português encrencado. Nesse tempo era cônsul de Portugal um engenheiro cabo-verdiano casado com uma portuguesa, mas que entretanto ficou doente, pelo que muito naturalmente a esposa passou a exercer as funções de cônsul e a assumir-se como consulesa. Ela e Fafe pareciam manter relações de muita cordialidade. Ela gostava de exprimir opiniões ousadas mas de que se arrependia imediatamente. E então exclamava, Ah, senhor embaixador, se calhar acabo de dizer uma grande asneira! E o embaixador, sorrindo bonacheirão, tranquilizava-a, Não, minha cara senhora, uma consulesa nunca diz uma grande asneira..Foi ele que me disse que tinha convidado Saramago a vir a Cabo Verde. Na altura estávamos às voltas com a revista Ponto&Vírgula, de que tínhamos acabado de publicar o primeiro número..Era o ano de 1983, já oito anos sobre a independência nacional, e a nível intelectual o país vivia o marasmo do passado. Praticamente a única novidade tinha sido a criação da Alternativa, onde se vendiam as peças de cerâmica do Atelier Mar e onde bebíamos chá de abacate aos fins de tarde. Vamos tentar agitar essa pasmaceira, vamos criar uma revista literária, decidimos Leão, Rui e eu..Estávamos conscientes de que em consequência da independência impunha-se a criação de qualquer coisa nova que mostrasse o corte umbilical com o passado. Assim, decidimos que a revista teria de ser algo literariamente original, e era óbvio que a sua escrita, particularmente o editorial, deveria refletir essa inovação. Estávamos convencidos de que iríamos receber imensa colaboração de jovens ansiosos por publicar... Bem, infelizmente não foi assim, e não fossem os mais velhos não teríamos o Ponto&Vírgula. De modo que a eventual inovação ficou pelo editorial que me encarreguei de escrever..Três ou quatro tentativas para o fazer resultaram falhadas, não mereceram a concordância dos outros. Acabei ficando farto daquilo tudo e então juntei pedaços dos editoriais rejeitados, mais bocados das nossas discussões e fiz uma coisa que não respeitava as regras da pontuação e disse-lhes: "Se não é isso então não sei fazer melhor!" Finalmente concordámos..Com aquilo acreditei ter inventado uma forma de escrever. Até que poucos dias depois uma amiga portuguesa que na altura vivia na Praia, sem qualquer explicação, mas certamente por causa do editorial, me mandou o Memorial do Convento que teria saído há um ano..Nunca tinha lido nada do Saramago, e logo me encantou a aparatosa preparação de Dom João Quinto para a justa tarefa de bem emprenhar Sua Majestade a Rainha e pouco depois já sorria com gosto, sobretudo desse esforço do autor em contar uma estória como se o humor não existisse na paródia das situações que cria e o riso estivesse apenas na entonação das palavras na sua voz escrita..Fui ouvir Saramago no Centro Cultural Português em Mindelo. Falou de si e da sua obra. Impressionou-me encontrar uma pessoa de tão bom humor, tanto no falar como no escrever, e que no entanto não se ria, parecia não saber como se deve fazer para se rir. Retive a estória que contou de alguém que lhe tinha telefonado a lamentar muito pesaroso não estar a conseguir penetrar nos seus livros. Experimenta lê-los em voz alta, disse que sugeriu à pessoa..Rimo-nos todos dessa observação, mas lembro-me de a ter achado muito sábia. É que mesmo escritas, as estórias são contadas, a gente as ouve, e então a melhor forma de as entender deve ser lendo-as em voz alta..Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018