O ajuste de contas de Jamie Lee Curtis com o Halloween

Realizado por David Gordon Green, o novo<em> Halloween</em> é uma sequela direta do clássico de John Carpenter. E desta vez há uma trindade feminina preparada para enfrentar o homem da máscara. Estreia-se hoje.
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Pensar que há quatro décadas John Carpenter escolheu Jamie Lee Curtis para protagonizar Halloween como uma subtil forma de homenagem a Alfred Hitchcock, tem o seu traço de curiosidade. Nessa memorável estreia no grande ecrã, ela, filha da lendária atriz de Psico (1960), Janet Leigh, teria então como desígnio secreto corresponder a uma certa dimensão icónica do cinema de terror, não obstante tratar-se de uma pequena produção independente. Hoje, depois do tremendo sucesso que se revelou o filme de Carpenter, ninguém pode dizer que não o tenha conseguido: basta ouvi-la gritar diante da ameaça do homem mascarado, tal como a sua mãe gritou por trás da cortina do duche em Psico, de Hitchcock.

Jamie Lee Curtis, a própria, regressa em força neste Halloween, de David Gordon Green, com os tais 40 anos a separá-la do primeiro, e traumático, encontro com o serial killer Michael Myers. A diferença é que já não recorre aos gritos - está munida com uma espingarda... Sendo o décimo primeiro filme da série, o novo realizador, que trocou o seu particular registo indie pelo cinema de género, decidiu ignorar todas as sequelas anteriores e dialogar diretamente com os acontecimentos da obra original. É aqui que John Carpenter entra como produtor executivo, abençoando um projeto que, finalmente, recupera o minimalismo do seu clássico de 1978, com o precioso elemento atmosférico da banda sonora, também por ele composta.

Em Halloween - assim intitulado sem qualquer numeração - vamos encontrar Michael Myers numa instituição psiquiátrica, onde continua a representar um grande mistério para o seu médico, uma vez que nunca proferiu qualquer palavra. Em cena surgem dois jornalistas a investigar o caso antigo deste homem que, recorde-se, aos 6 anos matou a irmã, e voltou a matar três jovens na noite de Halloween de 1978. Depois de tentarem uma reação da parte de Michael, mostrando-lhe a máscara que usou nessa noite trágica, procuram obter informações junto da sobrevivente, a heroína Laurie Strode (Curtis), que se limita a lançar as coordenadas do filme, através de uma resposta curta: "se não acreditam no bicho-papão, deviam".

A desforra desta mulher assume-se como o único e exclusivo motor narrativo da nova produção, que se encaminha para o confronto final das duas personagens míticas - em que a vítima se confunde com o predador. Laurie passou os 40 anos a preparar-se para a fuga de Michael (em noite de Halloween, claro), afastando-se de toda a gente e sacrificando a normalidade da vida doméstica, ao submeter a filha a um obsessivo treino de autodefesa para o dito momento. E chegada a altura, não só ela, mas também essa filha e a neta, enfrentarão o monstro numa autêntica logística de virtude e poderio feminino (a propósito disso, eis dados que importam nos tempos que correm: o lançamento nos Estados Unidos, com uma receita de 77,5 milhões de dólares, assinalou a melhor abertura de sempre de um filme de terror com liderança feminina).

Quanto a Gordon Green, não se sai nada mal nesta realização exigente, assentando numa postura entre o aluno disciplinado do mestre Carpenter e o cineasta indie, cujo cunho autoral pesa mais sobre a componente dramática de Halloween. Ou seja, ao mesmo tempo que Laurie Strode se tornou uma personagem psicologicamente mais densa - e sem dúvida que Curtis está no ponto dessa espessura -, o filme perdeu algum do refinamento na construção do medo que sustentava o original. Mas diga-se que o conselho que Carpenter deu ao realizador, de manter a história "simples e implacável", foi essencial para conservar a base de um conto de terror sem gorduras. E a feliz contradição é esta: se é verdade que Halloween acaba por não ser propriamente assustador na sua secura e economia de ação, da mesma maneira, estas características permitem-lhe vingar como objeto contracorrente, de genuíno gosto cinéfilo.

Sendo um grande fã do clássico, Gordon Green, assim como os coargumentistas Danny McBride e Jeff Fradley, fizeram questão de evidenciar uma espécie de "namoro" com a referência, inclusivamente recriando situações com outras personagens - veja-se a cena, que causa um arrepio na espinha, em que a neta de Laurie vê a silhueta da avó na rua através da janela da sala de aula, tal como Laurie, no primeiro filme, via a figura mascarada de Michael Myers. Estas e outras imagens povoam um imaginário que sobrevive ao tempo, aqui na expressão de uma franca homenagem.

*** (Bom)

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