O acaso é um lugar estranho

Valeu a Ryusuke Hamaguchi o Grande Prémio do Júri no Festival de Berlim e teve antestreia no LEFFEST: <em>Roda da Fortuna e da Fantasia </em>vem consolidar a importância de seguir este cineasta japonês.
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Enquanto se aguarda pela estreia da sua mais recente obra-prima, Drive My Car, a chegada às salas de Roda da Fortuna e da Fantasia (ambas produções deste ano que termina) tem um efeito de confirmação. Ryusuke Hamaguchi não é só uma das grandes revelações do cinema japonês dos últimos anos. O toque da sua lente na matéria do acaso quotidiano tem uma ressonância inesperada. Quer isto dizer que a descrição de Roda da Fortuna e da Fantasia como um filme composto por três histórias de engenho feminino não é suficiente para dar a dimensão do movimento interior que Hamaguchi extrai de situações mais ou menos intrigantes.

A primeira, com um título que sugere algo do domínio da magia, apresenta-se como uma longa conversa de duas amigas dentro de um táxi. De regresso a casa depois de uma sessão fotográfica, uma delas conta à outra, a modelo, o primeiro encontro que teve com um rapaz, aparentemente muito honesto nas intenções, que lhe falou de como ficou marcado pelo fim da relação com a ex-namorada. A certa altura, a jovem modelo apercebe-se de que esse rapaz pode não ser um desconhecido para ela, e um triângulo amoroso está prestes a formar-se, entre feridas abertas e uma estranha sinfonia citadina. Já no segundo segmento, uma jovem mulher casada, que está a ter um caso com um estudante, serve de isco para difamar o professor romancista que o reprovou. O amante pede-lhe que vá até ao gabinete dele na universidade e tente seduzi-lo: ela lê-lhe um excerto erótico do seu romance premiado, mas ele mantém a porta do escritório aberta... Finalmente, no terceiro conto urbano, uma mulher encontra na estação de comboios uma antiga colega de liceu, que em tempos terá sido mais do que uma amiga. E o que começa por ser interpretado como um sorriso do destino dá lugar a uma purificação emocional surpreendente.

Neste giro de coincidências e "ensaios" sobre a ambiguidade humana - e também sobre a deceção da realidade, regenerada por um traço de imaginação -, Hamaguchi dá azo à performance das relações na teia da vida moderna. Os seus atores, todos diferentes em cada história, respondem à urgência de um momento confessional, levando à magia delicada que ele procura na intensidade das palavras. É por isso que o seu cinema, muito marcado por uma leitura suavemente visceral entre as personagens, atua num nível mais profundo do que a luz quotidiana em que assenta.

Escrito pelo próprio realizador, Roda da Fortuna e da Fantasia tem uma grandeza pouco óbvia, desde logo porque Hamaguchi não trabalha uma estrutura narrativa com arranjo impactante. Cada conto tem existência própria, e é a respiração dos momentos-chave que dá sentido à melancolia das personagens femininas. Veja-se a referida cena da tentativa de sedução do professor na segunda história, em que a vulgaridade do ato da mulher se converte numa divagação intelectual, com o desejo à espreita, ou, na última história, a entrega das duas supostas conhecidas a um doce teatro de catarse. A voz autoral de Ryusuke Hamaguchi, cada vez mais segura, está aqui na libertação interior dos corpos pelo encantamento das palavras. Ao sabor do acaso.

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