Nuno Crato: "Acho que o Dr. Passos é um herói nacional"
Quando nos sentamos à janela na Bica do Sapato, o pão fresco e torrado em fatias finas, as azeitonas e as pastas já chamam por nós. O local do encontro, sugerido pela conveniência do sítio - Nuno Crato saíra há pouco de uma reunião ali no Parque das Nações - e pela certeza de que iríamos comer bem, não desiludiria o ex-ministro da Educação. "Foi bom voltar. Não vinha aqui há muito tempo", havia de dizer-me na despedida, depois de desfiarmos duas horas de conversa sobre as suas novas ocupações, a evolução da educação e a prestação do governo de que fez parte. Que lhe merece grandes elogios, ainda que ser ministro não tenha deixado saudades. "Foi uma experiência interessante e esclarecedora sobre muitas coisas. E também teve várias chatices. O mal-amado sociólogo francês Raymond Aron dizia que sempre que se olha para políticas públicas há que pensar não só que algo está mal mas como se pode fazer diferente. E ali percebe-se que coordenar é muito difícil, às vezes para mudar uma coisa é preciso alterar toda a lógica. Como fazê-lo? Isto dá-nos um certa modéstia na forma como encaramos a sociedade."
Foi uma experiência que aceitou como tendo princípio, meio e fim, por isso não a repetiria, mas olhando para os resultados não fica triste. "Foram tempos muito duros, os mais difíceis de que há memória - com grande tensão no país, com os professores a terem de trabalhar mais e com salários reduzidos, com muitos pais desempregados - e mesmo assim conseguimos que o ensino melhorasse. Eu sempre pensei que o programa iria dar frutos - fizemos a concentração das disciplinas fundamentais, a avaliação, trouxemos incentivos e autonomia às escolas, estruturação de disciplinas; era o fundamental, e nem precisava de muito dinheiro - mas isso aconteceu naquelas condições duríssimas. Os nossos professores tiveram uma imensa dedicação num momento particularmente difícil, conseguiram que os alunos ficassem a saber mais, e isso é extraordinário. Tenho uma enorme admiração por todos eles."
Fala das conquistas do PISA e do TIMMS, em que os alunos portugueses tiveram os melhores resultados de sempre, como fruto dos esforços dos professores, mas ainda há pouco esteve em São Paulo a convite da Fundação Fernando Henrique Cardoso para reunir com técnicos e explicar como foi possível subir em todos os parâmetros internacionais. "Tivemos nos resultados educativos de 2015 os melhores de sempre e há países interessados nisso", diz o ex-ministro, revelando que no fim de semana seguinte estará no Evidence Institute, na Polónia, para contar como Portugal conseguiu melhorar tanto. Por cá, já fez o mesmo a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, por exemplo.
À chegada dos copos de Esporão, e enquanto vamos dando baixa nas entradas, pergunto-lhe, então, que foi que influenciou o resultado. "Coisas simples: atenção à Matemática e ao Português, com mais horas e mais focadas; depois, atenção à História, à Geografia, às Ciências e ao Inglês - quando chegámos ao governo o Inglês não era obrigatório, apesar de a maioria dos pais, professores e diretores terem o bom senso de o incluir no currículo... Nós tornámos o Inglês obrigatório por sete anos, porque é importantíssimo para sermos competitivos nos negócios, por exemplo. E ainda estabelecemos metas curriculares mais ambiciosas e bem organizadas. E no fim fizemos a avaliação, a par do apoio e incentivo dados às escolas." Nada de mais portanto, garante, e assegura que a maioria dos professores concorda com as metas, apesar de todo o ruído que se ouviu durante a legislatura. "Notei isso no meu mandato: há um grupo de pessoas que sabe muito bem aproveitar os media. Muitas vezes aconteceu-me entrar numa reunião com 200 professores e à porta ter cinco pessoas com bandeiras, e as coisas correrem muito bem lá dentro mas depois ver escrito que havia uma multidão a protestar."
Culpa dos sindicatos? Confirma que em certos casos viu mais reação dos sindicatos do que dos professores - no exame dos docentes, por exemplo -, mas em parte entende a atitude: "São sindicatos de professores, não de alunos, logo defendem o interesse dos professores, é normal." Ainda assim, admite que algumas estruturas têm "uma visão muito estreita das coisas". E recorda "uma greve estúpida de professores - a razão era incompreensível - em que todos nós juntos não conseguimos encontrar solução atempadamente". Conta que os sindicatos entenderam a impossibilidade e "vieram ter connosco para acabar com a greve. Nós percebemos que alguns deles precisavam de uma saída digna e pondo acima de tudo o interesse dos alunos e o futuro do país conseguimos chegar a acordo, mas a Fenprof recusou-se a assinar. Ou seja, negociou tudo e assinou um documento a que chamou um nome esquisito, uma base de entendimento, e lá acabou a greve - que era o que interessava".
Aproveito a chegada da deliciosa entrada de polvinhos salteados que decidimos partilhar para lhe perguntar sobre as políticas do seu sucessor na pasta, se desfazer todas as medidas tomadas nos quatro anos da anterior legislatura pode estragar os resultados. Repete que estas conquistas não são suas, antes vêm de um foco dos governos dos últimos 15 anos no sentido de haver mais avaliação e atenção aos resultados. "Justino introduziu os exames no 9.º ano, Maria de Lurdes Rodrigues manteve-os, Isabel Alçada definiu metas... Portanto, há uma continuidade que foi tendo influência e pôs mais isso na cabeça das pessoas. Agora, vamos aguardar." E mais não diz, até porque defende que quando alguém deixa de ser ministro tem o direito de falar sobre o que fez, mas não deve passar o tempo a criticar. "Foi assim Mariano Gago comigo - reunimo-nos, ele apareceu várias vezes no meu gabinete sem ser anunciado e sei que houve aspetos com que ele concordava muito - e ajudou-nos em muitas coisas - mas noutros não e não andava por aí a falar. De Marçal Grilo não ouvi uma linha de crítica. É preciso respeito, ao menos institucional."
À falta do rosbife com salada-russa de que sou fã incondicional, optamos pelo naco de atum, que irá revelar-se à altura de ser promovido a primeira escolha - ligeiramente picante, a fazer o gosto ao paladar de Nuno Crato, que ainda agora, no Mercadão de São Paulo, se abasteceu das mais poderosas malaguetas. O ex-ministro conta-me que a falta de ligação à Educação dos ministros europeus da pasta foi das coisas que mais o espantaram. Diz que a forma de encarar o ensino já não é, ainda assim, puramente ideológica - apesar de haver por cá muitos tiques disso - e está convicto de que, em Educação, não é preciso inventar muito.
"A evolução das ciências modernas mostra a importância das estruturas das disciplinas fundamentais, exigência, incentivos, autonomia. Mas permanece aqui esta ideia completamente falsa e que me magoa de divisão entre esquerda e direita - quando na verdade a divisão é entre os que querem e os que não querem melhorar o ensino." Recorda uma declaração recente do partido comunista francês apontando o caminho da exigência no ensino para atestar a convicção de que a velha esquerda sempre teve a ideia de que era preciso formar, melhorar o ensino. "Agora parece que a esquerda quer melhorar o ensino de uma forma que ninguém sabe muito bem qual é, retirando-lhe a avaliação, e a direita é muito rigorosa. É um disparate! Às vezes, no Parlamento, eu brincava com os deputados do PCP e perguntava-lhes o que Lenine diria sobre o assunto." Ri-se. Depois continua: "A esquerda clássica sempre deu muita importância à educação, ao conhecimento. E estas ideias novas, estes projetos de ensino sem disciplinas, isso são ideias muito antigas, do meio do século passado. Agora vamos estudar tudo junto com o gancho do Império Romano?! História, Matemática, Português, Latim... Não é possível. As disciplinas são uma grande invenção, porque compartimentam, organizam, para se perceber melhor. E a avaliação é uma parte essencial do processo. Eu percebo que os sindicatos não gostem da avaliação, da divulgação de resultados, porque gostam de tudo igual. Mas isso não existe."
Insiste que "fazia muito bem a muita gente ler Marx e Lenine" e defende que, no ensino, só se consegue igualdade se alinharem todos pelos mínimos - que é o pior que pode fazer-se. "É claro que temos de proteger os mais desfavorecidos, mas também é preciso garantir condições aos melhores para progredirem. Não é possível que todos avancem da mesma maneira - um Mini e um Ferrari só fazem Lisboa-Porto no mesmo tempo indo ambos a 50 km/h. Deem condições ao Ferrari para ir mais rápido!"
Vai insistindo que, ainda assim, os professores têm sempre mantido grande sentido de dever e reconhecido que o conhecimento dos alunos e o futuro do país são o mais importante. "Entendo que haja exigências salariais e de condições de trabalho, mas não podemos prejudicar os alunos." Por isso, diz, enquanto ministro fez o que mais importava. E isso é visível não só na subida dos nossos miúdos nas tabelas internacionais de Português e de Matemática como nas baixas históricas dos níveis de abandono escolar (de 25% para 13,7%) e da taxa de reprovações no quarto ano, apesar do aumento da exigência. "Isto mostra como a educação evolui entre 2011 e 2015."
Já com o naco de atum com puré de batata-doce e espinafres à frente a espalhar um perfume de dar água na boca, recordo uma entrevista recente em que Nuno Crato se disse espantado por não ter visto agora acontecer uma entrada massiva de professores no quadro. Volta a rir-se: "Uma pequena ironia... Mas digo-lhe que era muito pedagógico passar alguns dos debates parlamentares dessa altura. Quem os viu e quem os vê! Era tudo mau, ia ser tudo fantástico; a verdade é que mudou muito pouco..."
Confronto-o com outra decisão que deu que falar: o ensino profissional. Interrompe-me logo: "Isso foi ridículo, porque toda a gente no mundo reconhece que é fundamental. Quando saímos, as vias profissionalizantes estavam em quase 50% dos alunos, que é a meta europeia - mas países como a Suíça têm muito mais." O que irritou a sociedade, recordo, foi os miúdos terem de decidir mais cedo. Desvaloriza. Insiste que isso foi fruto de mau entendimento e assegura que este foi um dos caminhos que ajudaram a reduzir o abandono escolar. E que houve grande preocupação, isso sim, com a qualidade. "O profissional não é nem pode ser depósito de último recurso. Tem de ter qualidade, conseguir formar técnicos de qualidade e uma condição essencial para isso é a colaboração com as empresas. Há quem ache que quanto mais o Estado gastar e mais pessoas empregar, melhor; eu acho o contrário, porque é dinheiro dos contribuintes que se poupa."
Conta que quando deu os primeiros passos para ligar as empresas ao vocacional ficou agradavelmente surpreendido. "No primeiro ano, cinco mil aderiram, no segundo, 12 mil. E estamos a falar de grandes empresas mas também de médias e pequenas, que dão lugar a quem se forma em mecânica, em serviços, etc. A EDP disse-nos: daqui a cinco anos vamos precisar de cinco mil eletricistas, portanto queremos colaborar nessa formação. E com esse acordo os jovens puderam ter contacto real com as instalações, em vez de prática simulada, aprendiam no local, nos postos de transformação, redes elétricas..."
Diz que é bom que cada vez mais alunos ambicionem uma licenciatura e descarta a ideia de que uma vez na via profissionalizante, para sempre num trabalho menor. E por isso, sublinha, as alterações feitas a estes cursos foram precisamente no sentido de aqueles miúdos poderem, se assim o quisessem, voltar à via comum e depois seguir para a universidade. "Havia permeabilidade entre os dois sistemas." Ainda assim, reconhece que há quem não possa chegar à formação superior. "Os intelectuais olham para os seus filhos e para os grandes liceus de Lisboa e Porto e não conhecem a realidade que se passa nos subúrbios e em zonas onde as crianças têm muitas dificuldades, onde há famílias com grandes problemas, que chegam a certa altura e realmente não querem ou não são capazes de prosseguir os estudos. Dar alternativa a esses jovens, sobretudo quando o ensino obrigatório passou de nove para 12 anos, era essencial. Por isso, arranjámos um ensino mais prático, que os motivasse temporariamente e lhes permitisse voltar à via regular ou seguir para o profissional e sair de lá a saber fazer alguma coisa com que pudessem ganhar dinheiro. Se a escola falha nisso é péssimo."
Dispensámos as sobremesas e avançámos diretamente para o café, mas não abreviamos a conversa. Quero saber se o governo de que fez parte merece boa nota. Reconhece que "há sempre coisas que podem ser feitas de maneira diferente", mas o que se fez é notável. E o melhor elogio vai para Passos Coelho, com quem estivera apenas uma vez antes de ser convidado para ministro. "Tinha falado com ele dez minutos depois de uma mesa-redonda. A minha sensação foi que era uma pessoa muito educada, cordial, simpática, e impressionou-me, porque muitos políticos são meio afetados, superficiais. Ele é genuinamente interessado."
Vinca que não tem ligações partidárias antes de repetir que o país viveu a situação mais difícil de que há memória e a ultrapassou. "Acho que o Dr. Passos é um herói nacional, um tipo que pega num país falido, sem dinheiro para pagar salários daí a dois meses, põe um sorriso e diz: vamos conseguir! E conseguiu, com um grande esforço de todos os portugueses." Muitos podem não se rever na ideia, mas Crato não muda uma vírgula à opinião. "Ele tem uma coragem, firmeza e persistência extraordinárias, uma educação e respeito pelos outros... Pode ser estranho, mas foi até hoje o patrão que mais liberdade me deu e o que me respeitou mais. Se discordávamos ele ouvia, chegou a dizer-me que não achava que eu estivesse certo, mas confiava em mim, eu era o ministro e cabia-me decidir, e ele apoiaria."
Foi o que aconteceu no caso da licenciatura de Miguel Relvas? "Teve uma atitude de extraordinária dignidade: era o grande amigo dele, talvez o seu maior apoio no governo, mas percebeu que a lei está acima de tudo. O Dr. Passos Coelho sempre me disse: se isso é a lei, faça-se o que tem de ser. E eu percebi o quanto aquilo lhe custava pessoalmente... Duvido que muitos tivessem comportamento semelhante."
Confirmado que há tempo para isso - uma alergia impediu-o de trazer hoje o relógio high tech que lhe é comum no pulso -, pedimos nova dose de cafés. E é precisamente para a tecnologia que nos viramos. Nuno Crato é um fã absoluto. "Tenho uns daqueles auscultadores por osso - que têm a grande vantagem de continuar a ouvir também o que se passa à minha volta - e já leio muito pouco em papel." Entusiasma-se a descrever as vantagens do suporte digital, a começar pelo tamanho de letra ser adaptável e a acabar nas inúmeras possibilidades e ligações. "Já me aconteceu ir para o avião, lembrar-me de que não tenho um livro que queria e descarregá-lo enquanto subo a escada. Eh, pá, é fantástico!"
Com uma filha a trabalhar como assistente de investigação num hospital e um filho assistente social, o ex-ministro tem tempo para viajar e dedicar-se aos temas que mais lhe interessam. Desde que deixou a pasta, há ano e meio, não voltou a dar aulas: está de licença sem vencimento do ISEG, ligado a dois projetos europeus de investigação e a escrever um livro sobre divulgação científica - "para sair nos cem anos do eclipse de Einstein, fenómeno observado no Brasil e em S. Tomé e a partir do qual Einstein se tornou verdadeiramente uma celebridade mundial, um superstar" - e outro sobre a ligação entre a econometria e as decisões políticas. "É muito interessante porque ajuda a saber se determinado programa teve efeitos, a atestar os resultados do que se fez com dinheiro público." Explica: "De há 12 anos a esta parte, uma série de cientistas sociais e microeconometristas repararam que há um manancial de dados que a informática permite conservar e que podem ser usados para investigar o impacto das medidas com muito maior fiabilidade do que inquéritos ou dados globais." Admite que o método pode gerar problemas de proteção de dados, mas diz que "há meios de proteção conhecidos e que se pode controlar, como salas seguras". Dá-me os pormenores e especifica as vantagens deste sistema em relação aos demais e incrivelmente consegue fazer o assunto interessante.
Infelizmente, ambos temos compromissos às 15.00 e chegou a hora de nos despedirmos. Antes de ir, a confirmação de que o papel já não lhe é natural: "Isto vai para o online, certo?"
Bica do Sapato
Pão, azeite e azeitonas
Água
2 copos de vinho tinto Esporão
1 polvinhos salteados
2 nacos de atum grelhado
4 cafés
Total: 89,25 euros