"Número 365, é o seu?" Familiares identificam corpos no necrotério de Bucha

25 por cento dos corpos no necrotério de Bucha ainda não foram identificados. Maioria teve morte violenta.
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"Número 365, é o seu?", pergunta um voluntário ucraniano por trás de sua máscara, mostrando um saco cinzento com corpos perto de um trailer, onde uma dúzia de outros corpos aguardam uma vaga no pequeno e lotado necrotério de Bucha.

"Sim, é para mim", responde um homem. "E o outro, é seu?", prossegue o voluntário, com pressa para terminar a sua tarefa.

"Não, é deles", responde Yevguen Pasternak. Aos 44 anos, comparece ao necrotério "todos os dias" há duas semanas para tentar encontrar as suas tias Ludia e Nina.

Liudmila Bochok, "Ludia", de 79 anos, morreu a 5 de março com tiros na cabeça e nas costas, segundo a certidão de óbito. O corpo foi encontrado no chão da própria casa.

A irmã Nina, de 74 anos e com transtorno mental, que morava com Ludia, foi encontrada na cozinha morta de insuficiência cardíaca, segundo a certidão, consultada pela AFP.

O sobrinho de ambas está convencido de que Nina morreu de medo, solidão ou fome, já que os russos executaram a irmã dela.

Depois de duas semanas caóticas a abrir dezenas de sacos de cadáver, a ver dezenas de corpos pálidos, Yevguen encontrou Ludia na segunda-feira, no fundo de um camião branco. A sua tia Nina, no entanto, não estava lá.

Cerca de 4000 pessoas permaneceram nesta cidade nos arredores de Kiev durante a invasão russa. Após a retirada das forças russas a 31 de março, 400 corpos foram encontrados, disse à AFP o chefe da polícia local, Vitali Lobas.

No entanto, "25% dos corpos ainda não foram identificados", confessa. "A maioria morreu de forma violenta", a tiros, adianta, sem fornecer um número preciso.

Os corpos dos habitantes de Bucha mortos durante a ocupação começaram a ser recolhidos a 3 de abril e as autópsias começaram no dia 8, no necrotério central regional, em Bila Tserkva.

Uma equipa de 18 especialistas da guarda francesa colabora nestas análises, que devem servir para as investigações locais e internacionais sobre possíveis crimes de guerra nesta cidade.

No estacionamento do necrotério, os corpos chegam em viaturas militares, semirreboques ou empilhados em veículos utilitários e camiões não refrigerados. "Estamos entre 0 e 5 graus", explica um funcionário, não autorizado a indicar o nome.

Uma vez descarregados, os sacos são deixados no chão, onde podem ficar durante horas, segundo a AFP.

No meio de cadáveres cobertos de plástico, cujo cheiro atrai cães vadios da região, Nadia Somalenko aguarda implacavelmente a certidão de óbito do marido.

Os russos tiveram que tirá-lo de casa porque ainda encontraram restos de uma refeição na mesa, explica.

A mulher fugiu para Kiev, mas seu marido Mykola, de 61 anos, não quis sair de casa. Ele não tinha medo dos russos, diz Nadia. Depois de uma manhã de espera, a certidão chega. Causa da morte? "Tiro na cabeça".

Quando um camião entra no estacionamento do necrotério, a pequena mulher abre a porta sozinha. Indiferente ao odor, procura o número 163.

"É nosso, o nosso filho! Deixe-me ver! Deixe-me ver se é ele ou não", implora. Liudmila quer abrir o saco, mas o marido aproxima-se para impedi-la. O homem abre o saco alguns centímetros e tenta afastar a esposa com a mão.

Com um estrondo, o cadáver é colocado numa maca suja. A mãe, a chorar, empurra-a pelo estacionamento do necrotério. Então, inexplicavelmente, começa a correr com ele, como se fosse um homem ferido a precisar urgentemente de tratamento em algum lugar.

Causa da morte? "Morto a tiro", afirma o atestado de óbito, consultado pela AFP.

Sergei Kaplichny, dono de uma pequena funerária ao lado do necrotério, corre de um caixão para outro. Os corpos de três moradores desta cidade executados sem motivo aparente por soldados russos aguardam para serem enterrados lá.

À esquerda, num caixão vermelho, está a tia Ludia, assassinada à porta de sua casa. No meio, Mykola, que foi levado durante uma refeição. E à direita, num caixão preto, Mikhailo Kovalenko, 62 anos, morto por um francoatirador ao tentar fugir, explica o genro.

Um carro azul balança pela estrada do cemitério e estaciona perto das sepulturas, interrompendo brevemente as orações do padre. Dois voluntários saem do carro, cada um com uma pá na mão. Quatro novos caixões chegam e as sepulturas precisam de ser cavadas com urgência e depois cobertas antes que a noite caia. No dia seguinte, quando o sol nascer, será hora de recomeçar.

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