Novo romance de António Lobo Antunes dá vozes ao antigo PCP. Leia aqui
Ao virar a escrita de trinta romances, António Lobo Antunes regressa com o primeiro livro que dá início a uma nova dezena.
Dividido em 24 capítulos, Diccionario da Linguagem das Flores tem um protagonista cuja voz se destaca das restantes. Figura inesperada de um relato da vida política clandestina - pelo menos, da única oposição ao regime que foi sobrevivendo à repressão - e que hoje já faz parte de um passado com quase meio século.
O novo romance de António Lobo Antunes viaja até à primeira metade do século passado, uma época em que há muito por revelar. Envolto em acontecimentos que se pretenderam apagar da história, o testemunho destas vozes evoca-as sem medo de os trazer até ao presente.
A chave de leitura desta narrativa reside num militante destacado do Partido Comunista Português - deixa-se para o leitor a sua identificação e o afirmar do nome - e das vontades que se uniram para se o retirar da memória e da cronologia de uma liderança partidária vencedora.
Mais do que um título, Diccionario da Linguagem das Flores é o recuperar de um livro antigo, que o suporta, bem como ao ziguezague de uma língua portuguesa que vem desde o século XIX e se confronta com a contemporânea.
Capítulo 1
Quando acabei a tropa um colega ruço de olho esquerdo desviado que quase nunca andava conosco, sempre metido em assuntos lá dele, arranjou‑me emprego na oficina de automóveis do pai no alto das Pedralvas, uma colina de pobres a norte de Lisboa com casas velhas e barracas e ruazitas estreitas, de modo que aluguei um quarto por ali com direito a banho duas vezes por semana, às terças e sábados, e um janelico para um quintalzinho vedado a tábuas de andaime no qual existia um limoeiro ferrugento onde nunca vi nenhum limão, só vespas desiludidas, inclinado sobre o pedaço de muro em que poisava o cotovelo, a senhoria, sempre de avental e chinelos que a adivinhar pelo tamanho deviam ter pertencido ao marido, evaporado há anos na confusão da cidade que não pára de engolir gente, também com tantas esquinas não admira, só não entendo como é que não nos devora a todos, chamava‑me às vezes para uma sopita comida na cozinha minúscula sem olharmos um para o outro, ela no único banco que sobrava e eu encostado ao lava loiça, sob uma lâmpada insegura a pestanejar
(dava‑se um piparote, melhorava num soslaio agudo para nós e recomeçava a tremer, que vida difícil têm as coisas sem uma alma caridosa que as ajude)
enquanto um cão ladrava num beco às escuras e calava‑se sei lá onde num suspiro comprido em que agonizavam fogareiros, no fim da sopa a senhoria lavava os pratos com uma esponja sumária e fechava‑se na salita porque de quando em quando lhe escutava a tosse, puxando pedaços de si mesma até à garganta de modo que os chinelos solitários lá em baixo e ela na alegria aflita de me saber por ali enquanto as acácias das redondezas se calavam uma a uma, mais longe do que os comboios no escuro, dava‑me ideia que nas Pedralvas nós apenas, presos um ao outro por um fio de silêncio que apesar de tudo sempre diminuía a solidão, quase apostava que de tempos a tempos vinha espreitar‑me a dormir, cobrindo‑me um tornozelo com o fim do lençol a reprimir uma festa desajeitada com demasiados dedos que me tropeçavam na pele, deixando‑me, depois de se ir embora, mais abandonado ainda, a lembrar‑me da minha mãe nas Caldas da Rainha, debruçada para mim a apontar o queixo ao meu pai
- Achas que o miúdo continua vivo?
comigo imóvel, espreitando‑a por uma frinchazita das pálpebras, alarmado
- Continuarei vivo a sério?
a tentar encolher um joelho que se calhar não encolhia, imagino que encolhe e é tudo, provavelmente os defuntos nos velórios sentem o mesmo e no entanto quietos, julgam que conversam com as pessoas, coitados, lhes fazem perguntas, as escutam
- Quem te garante que não os vamos encontrar logo no café?
como de costume a olharem os cisnes de pupila distraída, como de costume a pensarem noutra coisa
- Perdão?
as Pedralvas tão melancólicas no inverno quando chovia, dava ideia de serem as casas a tombarem do céu em gotas sujas alastrando no passeio, numa mesa do cafezito, perto do balcão, um homem que não conhecia, mais alto do que eu, mais distinto, claro, a olhar para mim enquanto rasgava um pacote de açúcar sobre a chávena e a seguir a colher, o bico agudo dos lábios, o pescoço comprido e a mão achatada no peito a fim de proteger a gravata, o que faz este aqui, como diabo deu com o bairro, uma ocasião por mês, ao fim de semana, apanho a camioneta para as Caldas da Rainha porque o meu pai doente, de pijama na sala, a lutar com os remédios que a minha mãe lhe traz, os amarelos, as cápsulas, o pó de dissolver na água, passados de bochecha a bochecha, cravado na parede fronteira
- Não consigo engolir isto enquanto a minha mãe lhe vai dando mais um copito
- Experimenta agora e ele
- Que sina
a esmagar os pés um no outro, a minha mãe com uma tigela
- Os doutores querem que comas o caldo
debruçada para mim num soslaio cheio de cochichos
- Não é nada no estômago dizem eles é à beira do fígado
admirada com a vida
- O que a gente tem dentro
o meu pai a bolinar na nossa direcção desfazendo‑lhe a prosa
- Essa acredita em tudo à beira do fígado é só tripas e gases se existissem médicos como deve ser metiam‑me um tubo no umbigo e chupavam aquilo
enquanto as caravelas dos cisnes, a regressarem da Índia cheios de especiarias, flutuavam no lago, pelos vistos do oriente aqui, mais coisa menos coisa, é um instante, depois trepam a rampa e entram a baloiçar, todos colorau e pimenta, na casota, os olhos do meu pai tão diferentes agora, baços, pálidos, fugindo de nós, ele que construía barcos dentro de garrafas com pedaços de cana, restos de fronhas e madeira, nos quais saía para países distantes preocupando‑nos à minha mãe e a mim que o esperávamos no sofá, nervosos com as tempestades
- Felizmente já passou a Guiné já passou a ilha de Moçambique
o meu pai no convés, distantíssimo, de chapéu de plumas, a comandar marujos ele que não conseguia comandar o que há à beira do fígado, desiludido
- Nem a tripa me obedece
de pantufas, o pobre, e uma botija morna a tentar consolar‑lhe os interiores, incerto, pálido, impedido de construir batéis porque o canivete falhava, a minha mãe, entristecida
- Lembras‑te das voltas ao mundo que ele dava conosco aqui sentados à espera?
e as naus alinhadas em frascos de xarope acolá na cómoda, com as rolhas a impedirem‑nas de deslizar dos gargalos, eu sempre na ilusão que você nos anunciasse
- Um dia destes regresso
e a gente à espera no capacho da entrada tão preocupados por sua causa, desejando que um veleiro, no rés do chão, a aproximar‑se pelas ondas das escadas acima, o meu pai na ponte de comando
- Podem aquecer o jantar
e logo a seguir sentado à mesa a prender o guardanapo no colarinho
- Se ao menos tivessem visto Madagáscar se tivessem visto Bornéu a tresandar a sereias e ao cânhamo do Ceilão
- Convidei o marajá com um cachucho em cada dedo para almoçar no domingo faz‑lhe um arroz malandro que ele gosta
sentado na única cadeira de braços que tínhamos, a descansar um momento de olhos fechados
- Se sonhassem o que navegar exige
enquanto a minha mãe, na cozinha, preparava um petisco de alto lá com o charuto porque da comida a bordo nem merece a pena falar
- Palavra de honra que até sola comemos
cercado por deuses de oito braços e dragões que o ameaçavam de longe a cuspirem fogo, o doutor para a minha mãe cujas pestanas vibravam
- Os problemas do pâncreas minha senhora nunca dão muita margem mas a esposa de um almirante aprende a aguentar‑se não é verdade e portanto ela na consulta equilibrando lágrimas no interior dos olhos de modo que nem uma para amostra a descer‑lhe a bochecha, de quando em quando parecia‑me entrever uma cintilação que espreitava no rebordo da pálpebra
- Não há um medicamento mais forte?
não desgostos, apenas a sombra deles enquanto o meu pai se justificava para o médico
- Desculpe estava a pensar em naufrágios
o meu pai que trabalhava no escritório de um armazém, entre caixotes e fardos, somando números todo o santo dia sem que os gritos dos cisnes em outubro, no lago das Caldas, o perturbassem, aos domingos de manhã passeava comigo sob as árvores, de cabeça muito acima da minha que eu mal conseguia enxergar
- Tens de estar sempre a dar pulos?
e garanto‑lhe que não pulava há séculos, de quando em quando, perdoe, lá me sai um sem querer, a minha mãe para mim numa espécie de eco envergonhado
- Foi a primeira coisa em que reparei nele
a mover‑se, redondo, sempre que falava, dando‑me a impressão que as palavras não lhe saíam da goela, vinham directamente do ar, o meu pai quando chegava
- Ora viva
empurrando a morte para um canto
- Isto vai sabendo que não ia, com pena da minha mãe, com pena de si porque a comida a bordo nem é preciso falar
- Sonho tanto com vocês
e a gente no meio das embarcações de Goa lado a lado nas prateleiras, com marujos nos mastros a preparem as velas
- Infelizmente daqui a nada tenho de me ir embora para uma entrevista no Paço Real mas prometo que volto