Novas provas lançam dúvidas. Condenado a dez anos de prisão é de novo julgado
Um homem que foi condenado em Lisboa a dez anos de prisão por tráfico de droga agravado, envolvendo 297 quilos de cocaína avaliados em 15 milhões de euros, conseguiu que o Supremo Tribunal de Justiça ordenasse a reabertura do julgamento por haver novos meios de prova, desconhecidos à altura da sentença em 2014, e "às graves dúvidas que vieram lançar sobre a justiça da condenação".
Em causa estão dois testemunhos efetuados no Brasil a pedido do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, por carta rogatória. Mas, com o arguido em prisão preventiva, a acusação foi proferida, o julgamento realizou-se e a condenação foi o desfecho, com as cartas rogatórias a chegarem a Portugal só depois da leitura do acórdão em maio de 2014 nas então varas criminais de Lisboa. Além disso, existe uma carta enviada ao arguido pelo alegado traficante brasileiro em que explica que foi obrigado a usá-lo no tráfico por ter sido ameaçado de morte. São estes três novos meios de prova que irão ser avaliados em julgamento e podem ditar um desfecho diferente para o arguido.
O caso tem o seu início em 2013. O homem, hoje com 53 anos, residente no concelho de Vila Franca de Xira, realizou uma importação de mobiliário do Brasil. Até essa altura nunca tinha estado envolvido no negócio de móveis. Antes teve uma empresa com um irmão e explorou dois bares, que agora estavam alugados e lhe proporcionavam um rendimento mensal de 3500 euros, de acordo com o que declarou ao tribunal.
A mercadoria chegou ao Porto de Lisboa no dia 8 de abril de 2013. Foi inspecionada pelos serviços alfandegários, de forma aleatória, e o scanner detetou um tampo falso numa mesa. Logo os funcionários foram verificar e encontraram placas com o que estimaram, e bem, ser cocaína. A Polícia Judiciária (PJ) foi alertada no mesmo dia, já que um camião de uma empresa de transportes tinha chegado ao porto para levantar a mercadoria.
Os elementos da PJ permitiram que os móveis saíssem para o seu destino, a residência do suspeito, o que só aconteceu no dia seguinte. Os polícias seguiram o camião e o arguido foi detido quando se preparava para descarregar o mobiliário. Inspecionado os móveis - uma tarefa que a PJ diz ter durado dois dias já que as placas de droga estavam bem dissimuladas e coladas com resina -, foram encontradas 286 placas de cocaína com um peso total de 297,3 quilos. O tribunal calculou depois que podiam valer no mercado cerca de 15 milhões de euros.
O homem negou sempre saber da existência da droga nas peças de mobiliário de estilo rústico, compostas por mesas, cadeiras, sofás e bancos. Ficou em prisão preventiva e um ano depois conhecia a decisão do coletivo da 8ª Vara Criminal de Lisboa: dez anos de prisão. De nada valeu que argumentasse que se tratava de "uma armadilha". Estava "convencido que seria a pessoa que já o contactara, desde Inglaterra, para comprar os móveis" que estaria na origem do tráfico.
O tribunal, através do acórdão consultado pelo DN, não acreditou. "Não é crível" a sua versão, disseram os três juízes, que não entendiam "o porquê do nada se começar a dedicar à importação de móveis", além estranharem a forma como o negócio se desenrolou a partir de um contacto com um indivíduo brasileiro. Ninguém "exporta móveis para Portugal, para um desconhecido, a consignação". O homem tinha respondido em tribunal que, não tendo ocupação laboral, aproveitou uma oportunidade de negócio que surgiu através do contacto no Brasil. A mobília, antes de chegar a Portugal, já tinha sido posta à venda no OLX, daí já existir o interessado de Inglaterra na sua aquisição, o que também causou "estranheza" aos juízes.
"Não ficamos com qualquer dúvida sobre o envolvimento do arguido", lê-se acórdão de 14 de maio de 2014, em que também se admitia que "não atuou sozinho". Contudo, a PJ não conseguiu estabelecer nenhuma ligação a outros eventuais envolvidos. Dos três telemóveis apreendidos não se estabeleceu qualquer conexão a mais suspeitos.
Meses depois, o Tribunal da Relação de Lisboa considerava improcedente o recurso, em que eram suscitadas nulidades e erro na apreciação da prova. Mas um novo recurso levou à anulação do anterior acórdão da Relação por ter sido proferido em conferência quando devia ter sido em audiência. O arguido suscitou ainda a recusa de juíza o que obrigou o processo a subir ao Supremo. Com tudo isto, os prazos de prisão preventiva sem uma decisão em segunda instância foram ultrapassados e o homem, por via de um habeas corpus deferido pelo Supremo, foi posto em liberdade em 2015 após cumprir dois anos e seis dias de prisão. O processo prosseguiu, com mais recursos, sempre improcedentes. Os novos meios de prova já eram então do conhecimento da defesa do arguido que pediu para serem analisados pela Relação, o que foi rejeitado. Em outubro de 2018, o Supremo manteve a pena de dez anos e o caso transita em julgado. Lê-se nessa decisão que da parte do arguido houve "um dolo direto muito intenso pois de explorador de bares passa a importador de móveis, o que é revelador da determinação da prática do crime".
Como os novos documentos tinham sido admitidos no processo, a defesa insiste com um pedido de revisão de sentença e, a 9 de abril de 2019, a juíza do Tribunal Central Criminal de Lisboa emite um despacho em que concorda com a reabertura do julgamento por haver novas provas que "poderão suscitar sérias dúvidas sobre a justiça da condenação". O Ministério Público, através de procuradora-geral adjunta (PGA), segue a mesma linha, tendo em conta que só uma muito séria injustiça da condenação poderá originar revisão. Em acórdão de 16 de maio passado, o Supremo Tribunal defere o pedido e ordena a reabertura do julgamento: "Os meios de prova apresentados pelo arguido eram do desconhecimento do tribunal e do próprio arguido na data em que ocorreu o julgamento e em que foi proferida a condenação em tribunal de 1ª instância, como bem frisa a Ex.ma PGA no seu parecer, que, do mesmo modo, se pronunciou no sentido do deferimento. Assim sendo, dado o desconhecimento de tais meios de prova pelo tribunal e pelo arguido, aquando do julgamento pelo tribunal a quo, e as graves dúvidas que os mesmos vieram lançar sobre a justiça da condenação do recorrente, defere-se o presente pedido."
Quando este acórdão é proferido já havia um mandado de detenção emitido dado que o caso tinha transitado em julgado. O arguido tinha mesmo sido convocado para a colheita de ADN, como determinado na decisão de 2014, mas faltou por duas vezes. Em 21 de maio, a juíza do Tribunal de Lisboa pede a anulação do mandado de detenção, justificada com o acórdão do Supremo que defere a reapreciação de provas.
Os novos meios de prova são assim dois DVD com gravação dos depoimentos de dois intervenientes no Brasil, que foram ouvidos a pedido do DIAP de Lisboa. Um é o responsável da empresa de mobiliário. Contou que só saíram sete móveis rústicos dali e que um indivíduo de nome Mauro, que fez o negócio dos móveis com o arguido, pagou para entrarem mais três peças de mobiliário na encomenda. Estes móveis não foram produzidos pela empresa brasileira de mobiliário rústico.
Da mesma forma, um diretor da empresa que procedeu ao despacho e envio do mobiliário para Portugal testemunhou que o tal Mauro o contactou a informar que iam seguir mais móveis que o previsto e que seria pago à parte.
Ora, eram estes três móveis que escondiam as quase 300 placas de cocaína, de acordo com o que está no processo. Mas quando estes depoimentos chegaram a Portugal, já o homem tinha sido condenado a dez anos de cadeia.
Outra nova prova admitida no processo é uma carta enviada pelo referido Mauro ao arguido em junho de 2015. Nessa missiva manuscrita, o brasileiro dirige-se ao português e pede desculpa. "O meu nome é Nelson e o senhor me conhece como sr. Mauro", lê-se. Depois diz: "Me arrependo muito de tê-lo envolvido neste negócio a mando de outras pessoas", (...)"mataram o meu irmão e tive que fugir pois tentaram me matar", escreveu. "Os principais organizadores disto são policiais" no Brasil, e alertou o arguido para que, "ao ter a sua liberdade, tenha medidas de precaução, estas pessoas são de alta periculosidade e vingativas."
Só em 2016 é que o condenado fez chegar esta carta processo. Argumentou que ficou sem saber o que fazer e teve medo perante o seu teor, sobretudo com o parágrafo final. Tem carimbo dos correios do Brasil e vai ser analisada em tribunal.
Agora, há duas sessões de julgamento agendadas para as próximas semanas, com um novo coletivo de três juízes do Tribunal Central Criminal de Lisboa, diferente do que julgou o caso em 2014, a ter em mãos a decisão: será este homem um condenado injustamente?