Nova estirpe do vírus antecipou o pós-Brexit

Depois de Boris Johnson ter endurecido medidas de confinamento, britânicos descobrem mais consequências do novo coronavírus.
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No início de janeiro de 2019 não existia covid-19 e o plano de saída do Reino Unido da União Europeia preparava-se para meses de debates e votações na Câmara dos Comuns.

O governo da então primeira-ministra Theresa May pôs em marcha a operação Brock, supervisionada pelo Ministério dos Transportes, um teste com dezenas de camiões em Dover com o objetivo de se preparar para uma eventual saída sem acordo da União Europeia. Quase dois anos depois o encerramento de fronteiras imposto pela França devido à nova estirpe do SARS-CoV-2 demonstrou que o teste estava muito longe da realidade. Centenas de camiões ficaram em filas e outros foram aconselhados a voltar para trás, numa altura do ano em que dez mil veículos de mercadorias chegam a transitar por dia entre Inglaterra e França.

Nos dias anteriores, já em antecipação ao fim do período de transição e à saída do mercado único por parte do Reino Unido, milhares de camiões fizeram filas de mais de 20 quilómetros.

No domingo, face ao anúncio da nova estirpe do coronavírus em Inglaterra, com uma maior capacidade de propagação, Paris decidiu suspender por 48 horas a pessoas e cargas, incluindo o transporte de mercadorias através do porto de Dover. A decisão levou o Reino Unido a antecipar a Operação Stack, o plano de contingência elaborado para lidar com as previstas demoras nas estradas em redor de Dover, no caso do mais que provável Brexit sem acordo.

O camionista David King, retido em Dover ao tentar levar uma entrega até à Bélgica, comentou à AFP: "Tem sido um ano frustrante para todos, não tem sido? Por isso, isto é apenas mais uma. Um mau final para um ano realmente mau", disse este inglês de Birmingham.

Um aeródromo em desuso foi aberto para servir de parque de camiões para até quatro mil condutores encalhados como David King e na terça-feira estavam estacionados cerca de 800.

"Os retalhistas armazenaram as mercadorias antes do Natal, o que deverá evitar problemas imediatos. No entanto, qualquer encerramento prolongado da fronteira francesa será um problema", disse Andrew Opie, diretor do British Retail Consortium.

"O encerramento do tráfego da França para o Reino Unido, incluindo o frete acompanhado, coloca dificuldades à capacidade do Reino Unido de importar e exportar bens essenciais durante o atarefado período de Natal", disse Opie.
"Embora as mercadorias possam entrar a partir de França, poucas empresas de transporte estarão dispostas a enviar camiões e motoristas para o Reino Unido sem uma garantia de poderem regressar à UE em tempo útil", disse Opie.

"A suspensão do tráfego de carga acompanhada ontem do Reino Unido para França tem o potencial de causar sérias perturbações no fornecimento de alimentos frescos de Natal ao Reino Unido - e exportações de alimentos e bebidas do Reino Unido", disse Ian Wright, diretor da associação alimentar e de bebidas Food and Drink Federation.

Cerca de 20% das importações do Reino Unido dão-se via Dover e Folkestone (terminal junto ao Eurotúnel), sendo parte importante de produtos perecíveis.

Algumas associações e empresas tentam passar uma mensagem positiva e evitar o pânico, mas há sempre um 'mas'. "Estamos a exortar as pessoas a não entrar em pânico porque a cadeia de abastecimento é resiliente. Há muita coisa por aí neste momento, haverá muito rolo de papel higiénico, massa, farinha", disse à Sky News o porta-voz da Associação de Transporte Rodoviário (RHA): "Se isto ultrapassar as 48 horas, será mais um problema", advertiu, porém, Paul Mummery.

Em comunicado, a cadeia de supermercados Sainsbury's disse ter todos os produtos para "o Natal britânico", embora tenha advertido que, se a situação de bloqueio se prolongar, é de esperar "lacunas nos próximos dias em alface, folhas de salada, couve-flor, brócolos e citrinos - todos importados do continente nesta altura do ano".

Restam poucos dias até 1 de janeiro, quando o Reino Unido deixará o mercado único e a união aduaneira da UE e as hipóteses de um acordo comercial entre ambos são cada vez mais escassas, com o primeiro-ministro Boris Johnson a voltar a defender a hipótese de no deal: "Os termos da Organização Mundial do Comércio são mais do que satisfatórios para o Reino Unido", comentou.

Sobre este tema, o negociador chefe da UE, Michel Barnier, informou diplomatas na terça-feira à tarde que a mais recente oferta do Reino Unido foi recusada, mas que "a porta se maném aberta para negociar", disse uma fonte à AFP.

Johnson tentou responder a mais uma crise ao dizer aos britânicos que estava a trabalhar "o mais rapidamente possível" para desbloquear o comércio através do canal da Mancha e aconselhou os compatriotas a continuarem a consumir como antes, uma vez que as cadeias de abastecimento permanecem "fortes e robustas". "Todos podem continuar a fazer compras", disse em conferência de imprensa.

No início de segunda-feira, o primeiro-ministro britânico convocou uma reunião do comité de emergência Cobra para discutir a situação sobre as viagens internacionais e o fluxo regular de mercadorias.

Mais tarde, Johnson falou com o presidente francês Emmanuel Macron sobre a proibição, tendo afirmado que iria resolver o problema "nas próximas horas". O rosto da saída do Reino Unido do clube europeu disse ainda que "estes atrasos só se aplicam a uma percentagem muito pequena de alimentos que entram no Reino Unido.

Na terça-feira, em conversações com as autoridades francesas, o governo britânico admitiu testar os camionistas que se encontram parados e retidos à espera da reabertura da fronteira do túnel do Canal da Mancha.

O rastreio nos portos faz "parte da discussão", declarou a ministra do Interior britânica, Priti Patel, em declarações à Sky News.

Estes desenvolvimentos surgem horas depois de o primeiro-ministro ter voltado atrás no plano para o Natal e cancelado os propósitos de milhões de pessoas, ao colocar Londres e parte do sudeste de Inglaterra no nível mais elevado de restrições, com o comércio não essencial fechado e ordens para os residentes ficarem em casa e não saírem. Estão ainda proibidos contactos com outros agregados familiares durante as festas.

Além do Reino Unido, a variante do coronavírus 70% mais transmissível do que a estirpe principal já foi identificada em locais tão diferentes como Dinamarca, Bélgica, Gibraltar, Países Baixos, Itália, Austrália e suspeitas na África do Sul.

Pela voz do chefe das emergências sanitárias Michael Ryan, a OMS contrariou as palavras do ministro da Saúde britânico Matt Hancock, que havia dito que a "situação está fora de controlo". Ryan e outros funcionários da Organização Mundial da Saúde tentaram amenizar a situação dizendo ainda que não há indícios científicos de que a nova estirpe cause uma infeção mais grave ou afete a eficácia dos testes de diagnóstico nem das vacinas.

Mas os governos de 40 países responderam com a proibição ou a restrição de voos do Reino Unido na tentativa de conter a variante, o que é uma dor de cabeça adicional em plena época festiva para os viajantes

"É desumano não dar mais atenção às pessoas. O meu namorado está na Turquia, quero voltar para ele", disse Beth Gabriel Ware, uma britânica de 23 anos.

"Basicamente, estou apenas ao capricho deles quanto a quaisquer restrições que decidam impor. Eu poderei ficar literalmente preso aqui", disse Shaun Thompson, um britânico que voou para passar tempo com a família da mulher na Polónia.

Na terça-feira, a Comissão Europeia, que quer uma resposta coordenada a encerramento de fronteiras e restrições de viagens depois do desconcerto que se verificou na primeira vaga da pandemia, recomendou aos estados-membros que levantem as proibições que alguns países impuseram às chegadas do Reino Unido. A prioridade é permitir que as viagens essenciais e o transporte de carga sejam retomados.

"As proibições de voos e comboios devem ser suspensas dada a necessidade de assegurar viagens essenciais e evitar ruturas na cadeia de abastecimento", lê-se numa declaração do executivo da UE.

O mesmo comunicado relembra que as regras de livre circulação com o Reino Unido ainda são válidas até ao final do ano.

No entanto, a Alemanha e a Itália anunciaram que a proibição de voos estende-se até 6 de janeiro e a República da Irlanda até 31 de dezembro.

Atualizado às 18.20

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