"Nos lares somos tudo: médicos, enfermeiros, cozinheiros... e pagos pelo mínimo"
Natália tem 40 anos e há sete que trabalha num lar de uma misericórdia no norte do país. Na altura, diz, não arranjou "outra solução, era o que havia", mas agora: "Gosto do que faço, gosto da relação com os velhotes", apesar de ter de fazer de tudo. "No lar, como diz a nossa encarregada, temos de ser médicos, enfermeiros, cozinheiros, animadores e até cabeleireiros", afirma ao DN. E pelo ordenado mínimo.
Natália faz parte dos quadros da misericórdia e está colocada numa minirresidência com 23 utentes, três estão acamados e têm necessidade de reposicionamento de três em três horas, comem por sonda, estão algaliados e recebem oxigénio. Ela e as outras colegas, 12 ao todo, divididas em dois turnos, tiveram de aprender a tratar de tudo para substituir a enfermeira quando esta não está. Quando perguntamos se tiveram alguma formação específica para tal, ri-se. "Não, foi ela que nos ensinou e é de a ver fazer", explica.
Em tempo de pandemia, o lar tem uma enfermeira permanente. "É sempre a mesma que vai durante um dia e mais meio a cada semana. Ela trabalha noutro lar onde tem 50 utentes e é lá que está mais tempo", explica.
Natália e as colegas tiveram ainda de aprender a fazer a leitura dos sintomas que vão notando nos idosos ou de que estes se vão queixando. São elas que os transmitem ao médico, que lá vai uma vez por semana, quem precisa de ser observado ou não. "Temos médico e somos nós que referenciamos quem deve ser visto, quem está mais em baixo, quem não come, como reagiu à medicação e outras coisas".
A lei não obriga a que estas instituições tenham médico, são muitas as que não têm. Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias, garante ao DN: "Todas as nossas casas têm." O presidente da Associação de Lares Privados, João Ferreira de Almeida, também diz: "A grande maioria dos nossos associados têm médico." Mas não é isso que acontece em muitas outras instituições de solidariedade social, para já não falar dos "lares clandestinos", quer relativamente ao médico quer aos profissionais de enfermagem e assistentes técnicos.
A Segurança Social apenas impõe às instituições que financia um enfermeiro por cada 40 utentes, um por cada 20, se houver utentes dependentes. "É pouco?", questiona Manuel Lemos. "É. Mas é o exigido pela lei e pelo Ministério da Segurança Social", sublinha.
O mesmo argumento é usado por este dirigente para o número de funcionários. "São poucos? São. Ganham pouco? Ganham. Mas é o que está na lei. As tabelas de remuneração foram discutidas e aprovadas pelos sindicatos. Se é preciso mudar a situação? É. Mas entre o que é e o que deveria ser há muita coisa que deveria mudar", sublinha.
Desde logo, o financiamento que é dado pelo Estado às instituições, que recebem utentes através do acordo com a Segurança Social. Manuel Lemos recorda que o Estado "só paga 400 euros por um idoso com carência económica, tendo em conta que o custo de uma cama, por exemplo, numa área urbana é de 1350 euros, quem paga o resto? As famílias? - cuja maioria também não tem possibilidades? Onde é que as instituições podem arranjar o dinheiro para a prestação de cuidados aos utentes? Muitas vezes, é nas remunerações mais baixas" assume.
Natália recebe o ordenado mínimo. Antes da pandemia levava à volta de 600 euros. Agora, como trabalha 12 horas sete dias por semana, tem subsídio de turno e recebe mais 90 euros. Ela é trabalhadora de serviços gerais e como diz faz jus à categoria. "Com a covid deixámos de ter animadores e até cabeleireira, como tínhamos. E somos nós que brincamos, que fazemos atividades com os idosos e que lhes cortamos o cabelo", diz a rir. Não é que se importe, "gosto do que faço". E o lar onde trabalha "tem condições", o pior "é mesmo a carga horária a que agora estamos obrigados e que ainda não sabemos quando acaba. As pessoas estão a ficar cansadas e há muitas a irem para baixa", desabafa.
Natália fala com o DN quando já é noite cerrada, depois de mais de nove horas de trabalho, porque teve uma consulta e não era para ir trabalhar, senão "eram 12 horas. Tinha uma consulta às 12.45 na cidade, a minha encarregada disse-me que não me preocupasse porque tenho muitas horas a mais e que o dia ficava compensado, depois a diretora ligou-me a dizer que tinha de ir trabalhar, porque uma colega faltou. E fui, assim que saí da consulta. Tinha de ir", continua.
"Não havia mais ninguém, a questão é que ainda tenho de estar sob todo este stress num dia e numa situação a que tenho direito". A questão também "é que nos pagam apenas os 20 dias de trabalho, temos muitas horas e muitos dias a mais, quem e quando nos pagam isso?", questiona.
Todas estas queixas têm sido reportadas pela encarregada à diretora. "Ela vai sempre alertando para o esforço que estamos a fazer, mas não feed-back". Por exemplo, "esta semana recebemos um comunicado a dizer que não vamos ter férias no verão nem no inverno, que não nos vão pagar as férias, que até ao fim do ano se mantêm os turnos de 12 horas, porque não se sabe quando isto vai acabar, mas se continuar assim, não aguentamos muito mais tempo", argumenta.
Hoje mesmo a ministra do Trabalho da Segurança Social e Solidariedade, Ana Mendes Godinho, disse, em entrevista ao jornal Expresso, que "a dimensão de surtos em lares não é assim tão grave". No entanto, "o surto de Reguengos de Monsaraz veio mostrar que 'a dimensão é grave' e que as instituições deveriam ser mais fiscalizadas", defendem Júlia Cardoso, da APSS, João Ferreira de Almeida, da ALP, e por Manuel Lemos da União das Misericórdias.
João Ferreira de Almeida disse mesmo ao DN que "é tempo de as instituições serem todas tratadas de igual forma. Se fosse um lar privado a ter lotação máxima e sem recursos humanos suficientes, fechavam-no", comenta. Sobre o surto no lar de Reguengos apenas diz que "foi assustador", e que a sua associação tem vindo a fazer desde março um enorme trabalho junto de todos os associados para que não baixem a guarda nos procedimentos e no material que usam. "Eu tenho apenas 16 utentes na minha unidade e sei o que gasto em material, como luvas e máscaras." Até agora, confirma, das 210 unidades que integram a Associação dos Lares Privados, "apenas sete tiveram casos de infeção".
Júlia Cardoso, da Associação dos Profissionais de Serviço Social, é da opinião que o envelhecimento e a forma como se trata os idosos requer cada vez mais formação. "A maioria dos diretores técnicos são assistentes sociais, mas não basta serem-no. Têm de ter formação em recursos humanos, em gestão e em outro tipo de cuidados." Argumentando: "As instituições queixam-se do financiamento e de como este é insuficiente para fazer face ao custo dos cuidados e das condições que lhe são exigidas, quando o que acontece é que, muitas vezes, não sabem é administrar os recursos financeiros e humanos que têm." A dirigente da APSS sublinha ainda haver "muitas instituições que preferem pagar menos e contratar pessoal não especializado do que pagar um pouco mais e ter profissionais bem formados".
Júlia Cardoso admite, no entanto, que "há realidades muito diversas no país. Há instituições que funcionam bem dentro das limitações que têm e outras que não. Tudo depende de quem está à frente, e é para este aspeto que se tem de olhar. Hoje, há já instituições que contratam diretores-gerais, que estão acima dos diretores técnicos e que nem sempre seguem as orientações de quem sabe", porque um lar não é uma empresa nem "uma unidade de saúde, é uma unidade social e a sua organização e funcionamento deve ser feita neste contexto", afirma.
O que se passa no lar de Natália no norte do país pode acontecer também em qualquer outra da zona centro ou sul. "As categorias profissionais que nos dão é para justificar as funções que temos de assumir", afirma Natália.
A ministra do Trabalho e da Segurança Social e Solidariedade disse também este sábado que até agora, e com a covid-19, houve um esforço de financiamento do Estado em mais de 200 milhões de euros, que foram colocados mais de 5800 funcionários nestas instituições e que até ao final do ano quer colocar mais, até aos 15 mil.
A intenção já foi aplaudida por Lino Maia da Confederação das Instituições de Solidariedade (CNIS), mas Natália duvida que tal seja possível, "o problema é que na minha aldeia já ninguém quer vir trabalhar connosco nestas condições", diz.
Este sentimento não serve só para os trabalhadores gerais, o mesmo serve para os enfermeiros. Ao DN, Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, confirma mesmo que a classe é tão mal paga nesta área que quando arranjar trabalho noutros sítios acaba por sair. "A maioria das instituições não paga mais de 700 euros por um enfermeiro em permanência e como o SNS agora tem escassez de profissionais assim que conseguem algum lugar nos centros de saúde ou nos hospitais deixam os lares".
A maioria acaba por fazer só umas horas, quando os cuidados a idosos "exigem cada vez mais enfermeiros e já com especialização em geriatria", explicam-nos.
No lar de Natália, bem como nas outras que pertencem à misericórdia em que está integrada, ainda não registou nenhum caso de covid-19. "Temos feito tudo direitinho. Temos plano de contingência e a enfermeira explicou-nos desde o início o que tínhamos a fazer e como agir. Temos circuitos autónomos, quartos e sala de isolamento. Aliás, temos dois doentes que estão em permanente isolamento, fazem diálise dia sim dia não, e têm de sair do lar. Eles não estão em contacto com ninguém e é sempre a mesma funcionária que trata deles sempre com o equipamento correto", admite.
Por outro lado, "desde dia 3 de março que não há visitas e connosco estão sempre a dizer-nos que temos de ter cuidado com a nossa vida social, evitar ajuntamentos, restaurantes, cafés, os emigrantes que cá estão agora, porque somos nós que os podemos infetar", conta.
Natália tem dois filhos, uma de 19 anos e outro de 12, com os turnos de 12 horas foi a mais velha que cuidou das aulas à distância do mais novo, dos almoços e jantares. Ela começa a sentir a falta da família, "às vezes passam-se dias que não os vejo. E quando se dá o caso de ter de trabalhar dez dias seguidos ainda pior". Sabe que até ao fim do ano vai ser assim, mas o que acontecerá "se existir uma segunda vaga? E se for ainda pior que a primeira? E se ficarmos todos exaustos?", quem cuidará dos idosos?
Manuel Lemos espera que este tempo de pandemia sirva para se repensar o setor social e na forma como se devem prestar cuidados de qualidade aos idosos. Mas não só. Espera que o paradigma de lar mude e que "o lar do futuro possa ser o lar no domicílio, que é onde cada um de nós, na maioria das vezes, está melhor".