Noiserv fez viagens de 15 horas a ouvir estes 20 minutos em loop
Chamam-lhe "homem-orquestra". O som de Noiserv costuma subir ao palco ou entrar no estúdio apetrechado com guitarras, xilofones, teclados, máquinas fotográficas ou de escrever, brinquedos de criança ou relógios. Diz que o seu disco anterior, Almost Visible Orchestra (2013), foi "a cena mais complexa" que conseguiu fazer. Mas agora saiu 00:00:00:00, em que o escutamos ao piano e nada mais, a não ser a sua voz, que aparece em escassas canções a cantar em português (outra vez ao contrário do habitual). Acontece que David Santos, que na música é Noiserv desde 2005, partiu o pé a jogar basquetebol e teve de ficar "vinte e tal dias" em casa: vicissitudes de viver num terceiro andar sem elevador numa zona histórica da cidade das sete colinas, perto do miradouro da Nossa Senhora do Monte, onde nos encontramos, e que ele recorda dos seus tempos de estudante do Técnico, antes da enchente de turistas que ali encontramos.
Nesses "vinte e tal" dias partilhou então a casa com o piano, instrumento que aprendeu a tocar tarde, e ao qual antes, no rodopio de projetos e concertos, pouco tempo conseguia dedicar. "Com esta questão do pé, acumulei uma série de rascunhos. Quando acabou aquele período, tinha uns 28 ou 29, alguns com um minuto, mas a grande base era de 20, 30 segundos de pequenas melodias. Aquilo depois ficou numa pasta que se chamava "Ideias soltas de piano". Isto foi em fevereiro do ano passado e só no início deste ano é que comecei a trabalhar no disco mais a sério."
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Noiserv diz que 00:00:00:00 é "a banda sonora de um filme que ainda não existe". Não tanto pela "família" que pode convocar ao ouvido - de Bernardo Sassetti a Yann Tiersen - mas porque, embora nunca tenha pensado "num guião ou numa história", David afirma que esta música assentaria bem sobre "qualquer conjunto de imagens de viagem, de passagem de um sítio para o outro, com a personagem principal a fazer uma viagem de carro ou de comboio". A dele foi uma viagem de "vinte e tal dias" no mesmo espaço. Mas depois dessa fez outra, fora de paredes, até à América do Sul. Lá, "em todas as viagens de autocarro que fazia - às vezes viagens de 15 horas - estava a ouvir em loop os 20 minutos [que compõem o disco] seguidos. E a pensar: "Não, esta nota aqui chateia-me." Uma cena meio obsessiva, mas não negativa, é uma procura, para aquilo nunca mais me chatear na vida. Portanto, a partir do momento em que sai, aquilo já está num ponto em que já não consigo mudar nada".
Agora que o disco já saiu, e que David já o levou a palcos como o do Teatro S. Luiz, em Lisboa, o piano de casa e da época do pé partido, cujo som lembra Screws - o álbum que Nils Frahm fez ao piano com um polegar partido -, teve de ser substituído em palco por um "piano pequenino" que se junta a parte da habitual parafernália de Noiserv. Porque os 20 minutos de 00:00:00:00, em que todas as canções podem ser escutadas como uma só, não chegam para fazer um concerto, e então voltamos a encontrar parte do Noiserv anterior. Ele que teve medo de que "as pessoas não percebessem" o que para si havia feito sentido: que, em vez de ter continuado a aumentar a complexidade da orquestra de um homem só, resolvesse ir "muito mais para baixo", onde só se ouve o piano e a sua voz.
Nove pianos num só
"O disco tem muito mais silêncio do que tinham os outros, mas acho que isso foi consequência do som do piano. Não sei se estava numa altura da minha vida em que fazia mais sentido uma coisa mais simples, nunca pensei nisso. A verdade é que há músicas em que estou a tocar um piano só, e há cinco anos era impensável uma coisa simples preencher-me os ouvidos."
Quando em 00:00:00:00 não ouvimos apenas um piano, mas "oito ou nove", trata-se, ainda assim, sempre do mesmo piano. "No disco anterior a sobreposição era de até 70, mas de vários teclados. A minha maneira de compor muitas vezes é assim: uma base mais simples em loop, outra coisinha mais simples, outra, outra, outra. É sempre uma procura. Como se fossem níveis de um jogo", explica.
Noiserv está mais exposto neste disco. Ele concorda, até porque não tem "uma barreira de instrumentos tão grande à frente". "Acho que as letras são mais expostas do que todas as outras, e o português ainda expõe mais."
Em Dezoito, a canção que fecha o disco, David diz "o que estaria a falar contigo se o tema fosse aquele, se fossem aqueles medos e aqueles receios". Como este: "Se em toda esta questão de tu andares loucamente no mundo a fazer outras coisas e a fazer coisas para dar aos outros - acho que a música é um bocadinho isso - não estás sempre, embora a falares de ti próprio, a fugires de ti próprio. Será que olhas mais para ti quando dizes aos outros o que é que sentes ou não? Ou por dizeres estás a olhar menos?" David afirma nunca ter sentido o Noiserv "como outra pessoa".
Só para ter um pouco mais tempo sem olhar para mim. É assim que acaba essa canção que começa com: Por que não rir de pé no fim?