No Villain. Desvendada em palco a primeira obra de Arthur Miller

Peça esteve esquecida durante oito décadas numa biblioteca universitária. Estreou-se nesta semana
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Escrita há quase 80 anos, a primeira peça de Arthur Miller - desde então esquecida nos fundos da Universidade de Michigan - teve a sua estreia mundial, a meio da semana, em Londres. A peça No Villain (Nenhum Vilão) foi escrita pelo dramaturgo norte-americano em 1936, quando ele era um estudante do segundo ano daquela universidade. A obra foi resgatada agora pelo encenador britânico Sean Turner e levada à cena no Old Red Lion Theatre de Londres, onde estará até ao dia 9 de janeiro.

O projeto nasceu quando Turner releu Timebends: A Life, a autobiografia que Arthur Miller publicou em 1987. Neste livro, Miller dedica algumas linhas a No Villain, descrevendo a misteriosa peça inédita como "a obra de teatro mais autobiográfica que eu alguma vez escrevi". Mas onde estava este No Villain? E porque razão permanecia escondido há tanto tempo? "Não descansei enquanto não achei o manuscrito [de No Villain]", explica Sean Turner, de 29 anos, à conversa com os jornalistas estrangeiros no final de uma das primeiras representações da semana. "A sedução era demasiado forte. Estamos a falar de uma peça autobiográfica de um dos maiores génios do teatro mundial."

Caça ao tesouro

O encenador começou por contactar Patrick Herald, agente de Miller durante décadas. Também falou com o Miller Trust, a fundação depositária do património do escritor que morreu em 2005, aos 89 anos. Ninguém tinha alguma vez posto os olhos em No Villain. A cineasta Rebecca Miller, filha do dramaturgo (e mulher do ator Daniel Day--Lewis), tinha apenas uma vaga ideia de ter ouvido falar nesta peça que o pai escrevera quando tinha apenas 20 anos. Mas Sean Turner não desistiu. Quase um ano mais tarde, depois de muita pesquisa e verdadeira caça ao tesouro, ele descobriu o original datilografado - com anotações manuscritas pelo próprio Arthur Miller - nos depósitos da monumental biblioteca da Universidade de Michigan. "Foi uma sensação incrível descobrir esta obra "nova" de um mestre e ter a autorização de toda a gente para a levar à cena. Nem queria acreditar na minha sorte", diz ainda Turner.

Arthur Miller (1915-2005) escreveu esta peça mais por necessidade do que por paixão. Na altura, o jovem Miller tinha dificuldades em financiar os estudos universitários. No Villain foi escrita em seis dias durante as férias da primavera com a finalidade de concorrer ao prémio Avery Hopwood, da Universidade de Michigan. Miller ganhou o prémio de 250 dólares (os prémios Hopwood ainda existem e movimentam, atualmente, cerca de 120 mil dólares anuais).

Os pontos de contacto entre o enredo e a vida de Miller são óbvios. A ação de No Villain centra-se à volta do conflito entre Abe - o patriarca de uma família de judeus de Brooklyn - e o filho Arny, que regressa a casa carregado de ideais marxistas depois de um ano na universidade. A tensão entre Abe e Arny é amplificada pelos problemas financeiros da fábrica têxtil da família, que tenta sobreviver apesar da crise económica e das greves (os pais de Arthur Miller - "Arty", como lhe chamavam - eram imigrantes judeus oriundos de uma aldeia da Polónia; também fundaram uma empresa têxtil em Nova Iorque, mas perderam quase tudo durante a Grande Depressão; a família Miller teve de trocar Manhattan por Brooklyn; tal como Arny, "Arty" Miller tornou-se marxista na Universidade de Michigan e teve de responder, anos mais tarde, perante a Câmara de Representantes por "atividades comunistas e antiamericanas").

Um talento em bruto

Esta peça não é certamente uma obra-prima ao nível de clássicos como Morte de Um Caixeiro-Viajante ou As Bruxas de Salem - peças que colocaram definitivamente Arthur Miller no pódio dos grandes dramaturgos do século XX. No Vil-lain não tem o diálogo conciso e brilhante, nem a intensidade trágica das obras posteriores de Miller. Mas esta peça dirigida por Sean Turner no minúsculo teatro do Old Red Lion revela o talento em bruto e as enormes potencialidades de um Miller sub-21.

Não surpreende, aliás, que a estreia mundial tenha ocorrido em Londres. A popularidade de Arthur Miller continua a ser enorme no Reino Unido. Em outubro, a BBC comemorou o centenário do escritor com uma série de documentários, peças radiofónicas e programas sobre ele. Vários teatros britânicos relançaram trabalhos de Miller, nomeadamente Do Alto da Ponte - a peça exibida no teatro Young Vic, em Londres, ganhou mesmo o prémio Olivier de 2015. Nos Estados Unidos, ao contrário, Miller continua a sofrer com a reputação de intelectual marxista e com o sabor amargo deixado pela peça Depois da Queda, de 1964, em que abordou de forma mais ou menos encapotada o malfadado casamento com Marilyn Monroe.

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