Um filme chamado Madres Paralelas, que terá Penélope Cruz como protagonista, é o próximo projeto do cineasta Pedro Almodóvar. O guião foi anunciado pelo próprio, que o escreveu durante o período de confinamento causado pela pandemia, ao mesmo tempo em que também ia redigindo crónicas para o jornal El Diario - embora logo no primeiro desses textos tenha referido que o seu ânimo não era suficiente para produzir ficção... mesmo confessando que tinha vários enredos possíveis em mente. Entenda-se: o argumento não foi propriamente escrito ao longo do tempo, mas sim de uma assentada. A inspiração recusou-se a vir gota a gota, como uma torneira que pinga. Pelo contrário..No papel, Madres Paralelas é um drama e foca-se na "vida de duas mulheres que dão à luz no mesmo dia e que têm trajetórias paralelas, daí o título", revelou o cineasta espanhol entrevistado pela agência EFE. Além disto, tudo o que se sabe sobre este projeto em gestação é que a história se passa no habitual microcosmos de Madrid, onde os seus filmes são rodados desde o nascimento da produtora El Deseo (que fundou em 1986 com irmão, Agustín Almodóvar), e as filmagens deverão arrancar no início de 2021, com a pré-produção agendada para outubro..A escolha de Penélope Cruz, por sua vez, não contém grande mistério. Basta que se recorde os papéis da atriz e amiga em filmes como Tudo sobre a Minha Mãe (1999), Voltar (2006), Abraços Desfeitos (2009) e ainda o último Dor e Glória (2019), a obra mais explicitamente autobiográfica do realizador (embora quase todas o sejam, de uma maneira ou de outra), em que ela interpreta a figura materna das memórias de infância do personagem de Antonio Banderas, o alter ego de Almodóvar..Talvez pela forma como foi fiel à imagem da mãe dele naquele filme, Cruz esteve sempre no pensamento do cineasta durante o processo de escrita deste "universo feminino das mães recentes, que estão a criar os filhos nos primeiro e segundo anos". Eis mais um pouco de véu levantado sobre o que aí vem..Mas antes de Madres Paralelas há ainda caminho a fazer. Pedro Almodóvar, que continua de coração cheio com o êxito de Dor e Glória, está por agora ocupado com aquele que será o seu primeiro filme falado em inglês. Trata-se de um projeto de curta-metragem que surgiu como pretexto para uma muito desejada colaboração com a atriz britânica Tilda Swinton, aqui a contracenar apenas com um cão, a partir de uma transposição livre da peça clássica de Jean Cocteau A Voz Humana - esta que, convém lembrar, já servira de inspiração para o seu Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988)..As incertezas geradas pela pandemia representam, no entanto, uma preocupação para o realizador, que confessa recear a hipótese de ser levado a interromper a produção deste pequeno filme. E interrompida foi, de facto, a longa-metragem Manual para Mulheres de Limpeza - adaptação de cinco contos do livro homónimo de Lucia Berlin - que se contava ser o seu primeiro trabalho a seguir ao devaneio artístico com Tilda..A escrita de Madres Paralelas veio baralhar as cartas e redefinir prioridades. "O que acontece é que eu acabo sempre por trair-me", diz Almodóvar a propósito da súbita mudança de planos. Por ser um projeto mais exigente em termos de cenários, uma vez que a rodagem aconteceria nos Estados Unidos (respeitando a génese dos contos), Manual para Mulheres de Limpeza foi adiado e dá assim o lugar a mais uma incursão do cineasta septuagenário pelo tema da mãe, que lhe é tão caro..Tudo sobre a mãe dele."A minha primeira recordação chega-me dos lábios da minha mãe, quando eu era muito pequeno. Contava-nos, como quem conta um conto de fadas, que em menina tinha vindo a Madrid e passeado pela Rua de Alcalá. Corriam os anos 1920, e falava-nos também das infantas, mas não me lembro exatamente do que ela dizia; na minha fantasia gostava de pensar que a minha mãe viera a Madrid e, passeando pela Rua de Alcalá, conhecera as infantas de então. Para uma menina manchega do princípio do século, aquilo devia ser como fazer uma viagem à Lua (...). A minha mãe transmitiu-me uma imagem de Madrid como uma cidade de lenda, e eu imaginei-a como uma dessas ilustrações de que tanto gostava nas enciclopédias.".O excerto longo é extraído de um livro de 1991, Patty Diphusa e Outros Textos (editado em Portugal com tradução de Pedro Tamen). Através da ternura destas palavras de Almodóvar vislumbra-se a sua enorme devoção pela figura materna, de quem sempre foi muito próximo. E, nos filmes, Madrid funciona também como vetor dessa nostalgia do ventre, com uma aparência distante da lenda imaginada, mas ainda assim mantendo um certo encanto e espírito da movida madrileña. "A minha vida e as minhas fitas estão ligadas a Madrid como as duas faces de uma moeda." É lá que se situam praticamente todas as suas histórias povoadas de mulheres, transexuais e gays. Sobretudo, as chicas de Almodóvar: Marisa Paredes, Rossy de Palma, Carmen Maura, Julietta Serrano, Victoria Abril e, claro, Penélope Cruz..Ora chamar de novo a atriz espanhola para encabeçar Madres Paralelas equivale a nomeá-la alma mater da recente página de um cinema de maturidade, que já vinha a desenhar-se em Julieta (2016), concretizando-se de modo pleno no posterior Dor e Glória. No filme de 2016, que adapta contos de Alice Munro, é a maternidade ferida de uma mulher (Emma Suárez) em crise interior, a percorrer memórias para se reencontrar com a filha desaparecida, que retoma um olhar fundamental materializado noutro título: Tudo sobre a Minha Mãe. Na raiz desta já referida obra-prima está o elogio de Almodóvar à capacidade de fingimento da mulher. "Recordo-me de em criança ter visto esta qualidade nas mulheres da minha família. Fingiam mais e melhor do que os homens. E à base de mentiras, conseguiram evitar mais do que uma tragédia.".O que dizer então de Voltar? Talvez que é o filme do regresso definitivo do cineasta ao colo imaginário da mãe e La Mancha, terra natal, lugar da infância retratado com todos os pormenores da linguagem e dos costumes. Aí Penélope Cruz assume as rédeas de um panorama feminino no papel de Raimunda, uma das mulheres a quem aparece o fantasma da mãe - daquelas crenças da terriola em que Almodóvar, mesmo sem fé, se baseia para colorir a ficção. E a verdade é que, fenómenos paranormais à parte, ele disse sentir-se muito acompanhado pelo espírito da mãe, Francisca, durante o processo criativo deste filme. Volver foi a sua forma de fazer o luto pela mulher que o trouxe ao mundo..Essa mesma que vemos numa existência muito terna na "autoficção" Dor e Glória, interpretada não só por Cruz, nas memórias da meninice do protagonista, mas também pela veterana Julieta Serrano, nas cenas em que, já perto da morte, ela transparece um certo ciúme em relação à dita cidade de Madrid, que lhe roubou o filho. Ou assim o entende. Lê-se nos olhos uma angústia silenciosa à volta da questão da homossexualidade, mas o seu eterno menino é o seu tesouro....Com este embalo de narrativas centradas na imagem materna, o anúncio de Madres Paralelas aparece assim numa sequência natural, sem cálculo. Já afirmava Almodóvar em Patty Diphusa e Outros Textos: "É impossível calcular uma trajetória tão imprevisível como a cinematográfica.".Má educação.Pode dizer-se que foi mais ou menos depois de Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, a sua projeção internacional, que o realizador manchego trocou as fantasias da carne - espelhadas em filmes como Negros Hábitos (1983), Matador (1986) e A Lei do Desejo (1987) - pelos turbilhões afetivos, direta ou indiretamente dominados pela maternidade. Uma saudável "má educação" (outro dos seus títulos sugestivos) que tem marcado uma filmografia irrequieta, de cores fortes, sempre a jogar com a identidade e as idiossincrasias familiares..Com efeito, Pedro Almodóvar, que saiu de casa aos 17 anos e foi viver para Madrid, não teve nesse capítulo da juventude nada que se pareça com uma boa educação. E talvez isso o tenha salvado. O rapaz que chegou à capital para estudar e fazer filmes viu-se travado por Franco, que acabava de cerrar as portas da Escola Oficial de Cinema. Arranjou pequenos empregos, aqui e acolá, mas foi o trabalho numa companhia telefónica que lhe deu muito do que se vê sobre a vida da classe média espanhola nos seus filmes (onde o telefone é um motivo recorrente). Começou por filmar por sua conta com uma câmara Super-8, enquanto dividia as noites entre a escrita, os namoros e a representação num grupo de teatro independente. Colaborou com várias publicações alternativas e chegou a ser membro de uma banda de punk-rock paródico, Almodóvar y McNamara. Eram os tempos em que lhe chamavam o Andy Warhol espanhol..Hoje com 70 anos, Almodóvar volta ao seio materno, a uma longa conversa introspetiva. Faz parte da serenidade de uma nova etapa da vida.